segunda-feira, 7 de agosto de 2006

A lógica do PCC

Desde que escrevi pela última vez neste blog, muito vi e ouvi falar sobre o PCC. Hoje mesmo, São Paulo acordou com um pouco mais do agito da facção. Como de hábito, a questão voltou a ser tratada da forma mais superficial possível: bandidos de um lado; policiais, Estado e sociedade de outro. Bem e Mal separados pela costumeira miopia social. É trágico ouvir a solução esbravejada pela maioria das pessoas: "- Melhor matar esses caras mesmo!".

Em maio passado, quando o PCC fez sua festa de inauguração em São Paulo, muitos supostos "pccistas" foram mortos nas periferias dessa gigantesca cidade. Solução inefetiva, obviamente, pois o combustível do PCC vem da desigualdade social enraizada em nosso país. Exterminar a violência à bala é assumir que a miséria não tem solução, é usar gasolina para apagar o fogo.

O agora famoso Marcola, considerado o cérebro do PCC, foi menino de rua na Praça da Sé. Neste exato instante, muitos futuros "Marcolas" continuam lá, expostos a todo tipo de carência e violência. De violência ainda pior nasceu o PCC, gerado no interior da Casa de Custódia de Taubaté, presídio de segurança máxima do interior de São Paulo. Nasceu, especificamente, em um dos anexos desse presídio, conhecido como "Piranhão". O nome já diz tudo: era o local onde os condenados mais perigosos sofriam constantes torturas e maus-tratos, métodos de reabilitação tradicionais no sistema penitenciário brasileiro. Foi assim que nasceu o Primeiro Comando da Capital, um grupo criado para defender aqueles que deveriam ser reabilitados através de políticas públicas decentes. Foi nesse cenário de degradação que Misael Aparecido da Silva, um dos fundadores do PCC, escreveu a carta de fundação do partido, em 1995. Deixo-a transcrita abaixo, como forma de registrar o alerta não ouvido há 11 anos. A carta está na edição extra da revista Caros Amigos, nº 28, maio de 2006. Boa leitura.
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"Não somos uma organização criminosa, muito menos uma facção, não somos uma utopia e sim uma transformação e uma nova filosofia: Paz, Justiça e Liberdade. Fazemos parte de um comportamento carcerário diferente, em que um irmão jamais deixará outro irmão sob o peso da mão de um opressor; somos um sonho de luta, somos uma esperança permanente de um sistema mais justo, mais igual, em que o oprimido tenha pelo menos uma vida mais digna e humana.

Nascemos num momento de opressão, em um campo de concentração, e sobrevivemos através de uma união. A semente foi plantada no asfalto, no cimento; foi regada a sangue, a sofrimento. Ela gerou vida, floresceu, e hoje se tornou o braço forte que luta a favor de todos os oprimidos, que são massacrados por um sistema covarde, capitalista, corrupto – um sistema que só visa massacrar o mais fraco. O sistema insiste em nos desmoralizar com calúnias e difamações; nos rotulam como monstros, como anti-sociais, mas tudo isso é parte de uma engrenagem que só visa esconder uma realidade, uma verdade, ou seja, o sistema precisa de um bode expiatório.

Muitos irmãos já morreram nessa luta desigual, muitos se sacrificaram de corpo e alma por um ideal. O que o sistema negava, o que ele repudiava, hoje ele é obrigado a admitir que existe. O próprio sistema criou o Partido. O Partido é parte de um sonho de luta; hoje somos fortes onde o inimigo é fraco. A nossa revolução está apenas começando; hoje estamos preparados, psicologicamente, espiritualmente e materialmente para dar a nossa própria vida em prol da causa. A revolução começou no sistema penitenciário e o objetivo é maior, revolucionar o sistema governamental, acabar com este regime capitalista, em que o rico cresce e sobrevive massacrando a classe mais carente.

Enquanto crianças morrerem de fome, dormirem na rua, não tiverem oportunidade de uma alfabetização, de uma vida digna, a violência só se tornará maior. As crianças de hoje, que vendem doces no farol, que se humilham por uma esmola, no amanhã bem próximo, através do crime, irão, com todo ódio, toda rebeldia, transformar seus sonhos em realidade, pois o oprimido de hoje será o opressor de amanhã.

O que não se ganha com palavras se ganhará através da violência e de uma arma em punho. Nossa meta é atingir os poderosos, os donos do mundo e a justiça desigual; não somos criminosos por opção e sim somos subversivos e idealistas. Se iremos ganhar essa luta não sabemos, creio que não, mas iremos dar muito trabalho, pois estamos preparados para morrer e renascer na nossa própria esperança de que nosso grito de guerra irá se espalhar por todo o país. Pois se derramarem nosso sangue, com certeza aparecerão outros que irão empunhar armas em prol de uma única filosofia: Paz, Justiça e Liberdade. Se tivermos que amar, amaremos; se tivermos que matar, mataremos".

terça-feira, 16 de maio de 2006

Sobre o PCC e as futuras rebeliões

" – Pessoal, estamos dispensados. 'Simbora' que a coisa tá feia".
Frase de um professor, colega de trabalho, pouco antes das 16 horas dessa segunda-feira. Passou pela sala, deu o aviso e sumiu. Até aquele instante, ninguém havia dito que seríamos dispensados. Duvidando, fui até a saída da faculdade para comprovar o fato. Encontrei a portaria quase fechada, a secretaria já trancada e alguns seguranças aguardando os últimos saírem. Convencido da retirada, voltei, ajeitei minhas coisas, peguei minha mochila e tomei o rumo dos demais. Não sem antes ouvir a recomendação do segurança: " – Tome cuidado... metralharam a estação Ana Rosa". Excelente notícia, justamente para onde me dirigia. Para minha sorte, apenas boato, como descobriria mais tarde.

Uma amiga convidou-me para ir a sua casa. Achei que não era necessário. Sugeriu-me que fizesse outro caminho. Disse-lhe que não precisava e segui meu trajeto tradicional. Tentei ligar para alguns colegas, mas o celular não funcionava. Na cidade dos congestionamentos, até os celulares estavam com trânsito em excesso. Quatro e pouco estava em casa. Eu e mais cinco milhões de pessoas. Os outros cinco ainda estavam a caminho, travados no trânsito após deixarem suas ocupações para trás. Comércio fechado, ruas quase vazias, pessoas em passo acelerado. Um êxodo digno de entrar para a história, como parece que entrou.

Cá estou, cidadão recluso, sem direito de ir, só de ficar. Não achei exagero quando um repórter da tv referiu-se ao "clima de 11 de setembro" provocado pelas ações do PCC em São Paulo. Milhões trancando-se em casa, muita sirene, muitos helicópteros, policiais desconfiados de qualquer cidadão que se aproximava. Mas, por mais inusitada que parecesse a situação, não a estranhei muito. Faz tempo que ecoa o tic-tac dessa bomba relógio pelas ruas de Sampa e do Brasil. Registrei isso em alguns textos desse blog. Já mencionei que somos potência olímpica na corrida de desigualdade, recordistas mundiais de concentração de renda, especialistas em desrespeito aos direitos humanos, nação contaminada há séculos pelo parco espírito público de seus governantes. Bases explosivas sobre as quais edificamos nosso país, berço esplêndido daqueles que nos atacam, pátria amada onde se formam, cotidianamente, os integrantes do PCC.

A receita se completa quando são adicionadas doses extras de corrupção policial, de lotação carcerária, de descaso de nossas instituições e autoridades. Tantos ingredientes misturados só poderiam produzir essa reação química. Para ser sincero, achei que a reação viria das ruas, não dos presídios. Era a população excluída que mais parecia propensa à revolta. Afinal, é ela a mais atingida por todos os descasos desse país, inclusive dos PCCs da vida. Talvez ainda aconteça. Talvez a verdadeira bomba relógio ainda esteja para explodir. Nossa desigualdade social é a contagem regressiva de futuras rebeliões. Só espero não estar por aqui. Para mim, bastou o dia de hoje.

terça-feira, 9 de maio de 2006

A pegada ecológica

Em tempos de freqüentes discussões sobre desenvolvimento sustentável, não se espante se alguém lhe disser que a população mundial está a uma "pegada" da extinção. Pode ter certeza de que não é uma metáfora. Também não estranhe se adjetivarem o termo e lhe disserem que sua "pegada ecológica" é um risco ao nosso planeta. Se você ainda não ouviu esse tipo de conversa, ouvirá em breve.

Dentre os estudiosos e partidários do desenvolvimento sustentável, "pegada ecológica" (footprint, em inglês) significa o rastro que cada ser humano deixa no planeta para viver. Dito de outra forma, é a quantidade de recursos naturais que cada um de nós consome para suprir as necessidades diárias de alimentação, moradia e locomoção, só para citar os itens mais básicos.

Não é novidade que vivemos um período de insustentabilidade no planeta Terra. A agressiva produção industrial do século XX, acompanhada de nosso consumo pouco consciente, produziu níveis inimagináveis de degradação ambiental. Poluição do ar, esgotamento da terra, escassez de alimentos e falta de água potável são os exemplos mais evidentes. Olhamos para esses cenários com extrema indignação e ainda apontamos o dedo da culpa para os países mais industrializados. Pois bem, se você é um desses que está com o dedo apontado, é melhor abaixá-lo. A responsabilidade também é sua, e não é pequena.

O conceito de "pegada ecológica" é a ferramenta que permite mensurar a participação de cada indivíduo no processo de degradação de nosso planeta. Permite-nos avaliar o impacto de nossas opções diárias de consumo no meio ambiente, estimando a quantidade de recursos naturais necessários para produzir os bens e serviços que nos sustentam, bem como os resíduos que geramos. De acordo com esse conceito, cada ser humano necessita de uma quantidade mínima de espaço natural produtivo para atravessar toda sua existência.

É como se, no dia de nosso nascimento, ganhássemos um lote terra (exatamente 1,7 hectare/habitante) de onde extrairíamos toda nossa alimentação, toda nossa água e todos os meios necessários para uma condição de vida digna. Seria o espaço de nossa moradia, de produção de nossos bens e, logicamente, de depósito de nosso lixo. Caso um de nós decidisse aumentar o tamanho de seu lote, o vizinho seria prejudicado e não teria recursos suficientes para sobreviver dignamente. Caso muitos decidissem multiplicar as dimensões de seu espaço, outros muitos ficariam à margem do sistema, sobrevivendo à míngua. Caso muitos gerassem resíduos em excesso, muitos outros lotes receberiam uma sobrecarga inviável desses resíduos, a qual afetaria o clima de todo o sistema.

Na prática, o cálculo da pegada ecológica sinaliza que nosso padrão de consumo individual é insustentável em larga escala. Se você fez o cálculo a partir do link acima, já deve ter percebido que utilizamos recursos que requerem muito mais do que 1,7 hectare para suprir nossas necessidades. Os mais abonados, por exemplo, expandiram suas cercas para 7 hectares, aproximadamente, o que significa que a produção de nossos alimentos, moradias, carros, roupas, calçados e tecnologia, bem como os resíduos gerados a partir daí, requerem muito bem mais do que o espaço que ganhamos ao nascer. E se ocupamos esses hectares a mais, acabamos tirando o espaço de sobrevivência dos menos afortunados.

Pior ainda, se quiséssemos que todos os atuais seres humanos excluídos tivessem um padrão de vida semelhante ao nosso, não haveria, em toda a Terra, recursos naturais suficientes para tamanha demanda. Basta olharmos para o lado para constatarmos a escassez de água potável enfrentada por parte da população mundial, assim como a impossibilidade de acesso à habitação e alimentos de boa qualidade que essa população enfrenta. Para resolver o problema, seria necessária uma reengenharia global em prol do bem estar de todos. Em nosso atual estágio de desenvolvimento, a única saída seria reduzirmos o tamanho de nossas propriedades e a utilização dos bens que nos confortam cotidianamente. Tarefa impossível num curto espaço de tempo, mas necessária para a continuidade da vida na Terra.

É difícil encarar os fatos, mas só podemos manter nosso atual padrão de vida se boa parte da população mundial continuar à margem desse mesmo padrão de consumo. Não há solo, nem água, nem plantações que agüentem o consumo de 6,5 bilhões de pessoas. Se quisermos assegurar condições dignas para a existência das futuras gerações, teremos de viver de acordo com os limites da Terra, não de acordo com nossas vontades de consumo. Mas antes que as futuras gerações cheguem, milhões de seres humanos continuarão caminhando à beira do abismo da exclusão. Para esses, cada pegada será mais um passo em direção ao precipício.

sábado, 25 de março de 2006

Rezemos para vmat2

"Se Deus existe, por que Ele não faz alguma coisa?". Muitos seres humanos já fizeram essa pergunta, para si ou para outros, em algum momento de inconformismo ou desespero. Eu mesmo já me perguntei algumas vezes. Faz todo sentido perguntar, pois não é fácil compreender como um ser que habita o andar de cima, carregando tantos supostos poderes, pode consentir tamanhos absurdos na existência humana. Dizem-me que Ele age assim porque sabe o que faz, porque tem a absurda mania de escrever certo por linhas tortas. Escuto isso desde minha infância, mas a lavagem cerebral ainda não surtiu efeito. A não ser por esse pronome "Ele", que só consigo escrever em letra maiúscula.

Considero uma ideologia de conto de fadas a crença em Deus da forma como ela está estabelecida: um ser divino, altruísta e benevolente, criador de toda a vida e que olha por nós a todo instante, pronto para resolver nossos problemas cotidianos. Fosse assim como o pintamos, não teria deixado o próprio filho padecer nas mãos dos neuróticos que Ele mesmo, segundo consta, teria criado à sua imagem e semelhança. Também não permitiria que outros tantos filhos tivessem atravessado a história da humanidade em meio ao sofrimento da miséria, da tortura, da incompreensão, da violência gratuita e da intolerância. É mais razoável assumir que Deus, caso de fato exista, seja o próprio paradoxo e contradição em pessoa, o que afasta a idéia sentimental que temos Dele, mas nos aproxima de sua verdadeira essência.

Se depender da ciência, as céticas palavras acima encontram algum fundamento na biologia do século XXI, especificamente no campo da genética comportamental. Dean Hamer, geneticista americano, autor do livro "O gene de Deus" (Editora Mercuryo, 2005), gerou forte polêmica ao considerar que o Todo Poderoso pode ser apenas uma seqüência de nosso código genético. Na verdade, o velho Dean afirma que o gene determinaria a predisposição à fé nos humanos, não sendo exatamente o próprio Deus. Mas, como um bom título também estimula as vendas, a polêmica foi instaurada. O gene isolado por Hamer e sua equipe, no Instituto Nacional do Câncer, nos Estados Unidos, é identificado pela sigla vmat2. Estaria envolvido no transporte de uma classe de mensageiros químicos do cérebro, conhecidos como monoaminas, do qual o mais famoso é a serotonina, a molécula do bem-estar. Só para constar, o ecstasy e o Prozac influenciam positivamente o humor alterando os níveis de serotonina em nosso sistema nervoso. Hamer chegou à descoberta por acaso, analisando os hábitos de pacientes tabagistas, dentre os quais a disposição à espiritualidade. Todos aqueles que se disseram mais crentes em Deus, considerando-se mais místicos ou espiritualizados, apresentavam o tal vmat2.

Não é de agora que Dean Hamer causa polêmica. Em 1993, afirmou ter descoberto um trecho de DNA supostamente responsável pela homossexualidade masculina. A descoberta lançou-o à fama e depois à lama, quando outros cientistas falharam em replicá-la. Mas, olhando por aí, parece que esse cientista tem alguma razão dessa vez. Afirmo isso porque tenho a plena convicção de que, se realmente acreditássemos em Deus e em toda sua onipresente força, certamente não teríamos agido e não continuaríamos a agir de forma tão predatória em relação à vida.

Muitos daqueles que disseram crer em Deus promoveram e promovem a discórdia, patrocinaram e patrocinam a miséria, disseminaram e disseminam a violência, defenderam e defendem a ignorância, levaram e levam suas vidas com uma pobreza singular de espírito. Muitos são racistas, machistas, neo nazistas, terroristas e todo o tipo de falsos moralistas, só para não perder a rima. Também somos nós no dia-a-dia, no momento em que admitimos a desigualdade social de nosso país, a falta de ética de nossos governantes, a fome em nossos cidadãos, a submissão em nossos trabalhos, o autoritarismo de nossos professores, a intolerância de nossos pais, a hipocrisia de nossos semelhantes. Indicadores de nossa descrença em Deus, misturados à falta de cidadania, à falta de ética, à falta explícita de um norte espiritual que realmente fosse levado a sério. Só nos resta rezar. Não para Deus, mas para que a ciência consiga reparar o vmat2. Certamente há uma falha grave nessa seqüência genética.

sábado, 11 de março de 2006

Liberdade condicional

Sempre gostei do som do U2, principalmente das letras de suas músicas, mas nunca levantei a hipótese de batalhar por um ingresso para o show do grupo em terras brasileiras. Tenho poucos gostos musicais, já não idolatro bandas ou cantores e nunca faria plantão para conseguir um lugar ao sol, como fizeram os fãs brasileiros de Bono "Vox".

Também tenho uma visão crítica (para não dizer ranzinza), sobre mega espetáculos regados a milhões, principalmente num cenário como o Brasil, onde faltam tostões para o pão diário de milhares de cidadãos. Nada contra os shows em si.

É o contraste que me incomoda, esse choque de nossa cotidiana pobreza com um momento único de gigantesco investimento financeiro. Neurose de quem vive num dos países mais desiguais do mundo. Também sentimento de culpa pela convivência incessante com os excluídos que vagam pelas ruas de São Paulo.

Querendo ou não, já se tornou inevitável pensar naquilo que poderia ser feito com os milhões de reais que a mídia investe em duas poucas horas de êxtase. Enfim, não sei se foi por minha declarada falta de idolatria, talvez por minha postura de "isso não é pra mim", acabei ganhando, de última hora, um ingresso para o show do U2. Veio pelas mãos de um amigo, por sua vez amigo de um empresário envolvido com os patrocínios do show. Pela reação dos que souberam, eu havia acabado de acertar na loteria, tamanha tinha sido a disputa pelos ingressos.

Durante o show entendi o porquê do delírio coletivo. Uma tecnologia de palco inédita no mundo, uma banda de rock politicamente correta, um vocalista engajado em causas humanitárias e um estádio no bairro mais nobre de São Paulo. Para completar, uma noite de calor e céu limpo, pouco comum nessa poluída metrópole.

Há pouco tempo pedi, em outro texto deste blog, um distanciamento temporário da angústia provocada pela miséria das ruas de São Paulo. Pedido feito, pedido aceito, pelo menos por duas horas foi me dada a chance de subir à tona, antes de voltar à realidade de exclusão. Durante essas duas horas, conforme as mensagens humanitárias ganhavam o super palco tecnológico do U2, a sensação era de que o mundo poderia dar certo. Ali, naquele instante, vendo aquela multidão sensibilizar-se e apoiar as causas do grupo, até parecia fácil mudar a realidade. Tive a sensação de que era só sair dali e começar a batalha. Ilha da fantasia, eu sei, mas foi bom viver assim por alguns instantes.

Se muitos curtiram, outros partiram para o ataque. Li críticas ácidas sobre a forma como Bono e o U2 tratam os problemas do mundo. Os mais mau-humorados dizem que o grupo mistura alhos com bugalhos, ou seja, o problema da fome com as desavenças religiosas do oriente médio, a excludente economia mundial com os ideais etéreos de uma humanidade sem direita e esquerda, sem elite e pobreza.

Da forma como entendo, música, arte e cultura estão aí para mostrar como o mundo deveria ser idealmente, não para apresentar metodologias de como chegar até lá. Outros disseram que Bono equivocou-se ao procurar Lula para uma conversa. Além do encontro oficial, Bono também poderia ter se encontrado Zilda Arns, da Pastoral da Criança, ou Oded Grajew, do Instituto Ethos, duas lideranças importantes no campo de nossas ações sociais. 

No final das contas, tive minhas duas horas de folga. Seria bom viver sempre com essa sensação, mas a saída do show não deixou dúvidas de que o benefício de minha liberdade era por pouco tempo. Lá estavam as crianças de rua, os ambulantes desesperados, os excluídos pedindo mais um pouco de socorro. Começava a voltar à prisão da desigualdade.

A ilusão foi ficando para trás, enquanto caminhávamos pelas ruas do Morumbi. Durante a volta ao cárcere, foi estranho notar uma grande quantidade de casas com a placa de "aluga-se" pelas ruas do bairro, que já foi o mais luxuoso de São Paulo. Dizem que é por causa da insegurança crescente. Os moradores estão abandonando as mansões e mudando-se para prédios ultra seguros. Já disse que isso é atitude de elite que não se preza. Comecei a pensar em como estará o bairro do Morumbi no futuro. Parei de pensar no instante seguinte. Talvez não haja futuro... nem para mim, muito menos para os excluídos.
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Meu agradecimento especial ao amigo Paulo A. Cruz, que conseguiu o convite gratuito para o show.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

A que horas jantaremos?

- Como faremos daqui por diante? Sempre jantamos às sete!
- Homens livres não têm hora para jantar.
- Mas sempre fizemos assim! A que horas jantaremos?

O breve diálogo é entre um escravo e a cidadã revolucionária que veio decidida a libertá-lo. A cena é do filme "Manderlay", do cineasta dinamarquês, Lars Von Trier, um exímio questionador de alguns arraigados hábitos da sociedade americana. Por tabela, sua crítica estende-se ao restante de nosso contraditório mundo.

O roteiro de Marderlay transcorre durante os anos trinta do século XX, décadas após a escravidão ter chegado ao fim nos Estados Unidos. E ainda que a cena fizesse referência aos dias de hoje, seria inquestionável sua atualidade . A pergunta feita pelo empregado livre, sobre o horário do jantar após conseguir a própria liberdade, traduz muito da mentira inventada pelas sociedades ocidentais sobre o fim da escravidão. Por sinal, a mesma escravidão que nunca terminou, que se estende até os dias atuais, com brancos explorando negros e outras etnias.

Não sou sociólogo, nem antropólogo, mas não é preciso ser especialista para perceber que a libertação dos negros foi até onde interessava para os brancos. De uma certa fronteira em diante, não há qualquer liberdade concedida.

Liberdade só tem sentido quando todos, sem exceção, têm acesso aos seus direitos e os exercem em sintonia com os direitos alheios. O que ocorreu em fins do século XIX passou longe disso, pois as responsabilidades pelo fim da escravidão recaíram, basicamente, sobre os negros. Basicamente, os brancos conservadores disseram: "Fizemos nossa parte, fomos bons, agora se virem". Pura mentira com ares de bondade. Se o propósito de libertação dos negros fosse realmente nobre, direitos civis, políticos, trabalhistas, sociais e econômicos teriam sido compartilhados sem exceção.

No Brasil, a mentira da libertação do negro pode ser vista em qualquer lugar. Nossos irmãos estão se virando nas periferias, nos subempregos, na marginalidade, no salário de fome, nas gorjetas para amenizar a miséria, na liderança do tráfico de drogas, no preconceitos contra as cotas nas universidades, nos crimes dos quais são vítimas. E a maioria dos "homens brancos" sabe apenas lamentar o aumento da violência, sem perceber que seus antepassados e eles próprios inventaram uma mentira sobre a liberdade dos negros. E quem mente são os brancos, diga-se de passagem.


domingo, 29 de janeiro de 2006

Subsolo social

"Não sou pessimista. O mundo é que é péssimo!". Frase de José Saramago, Revista Época (comprei a contra gosto esse panfleto conservador), última semana de outubro de 2005. Preciso do apoio de Saramago, pois meu blog começa a parecer o espaço de um pessimista, quando não sou. Na verdade, faço força para não ser, mas, quase cotidianamente, meu otimismo sofre alguma contusão em treino. Como hoje, por exemplo, quando acordei para com a seguinte manchete sobre a cidade em que vivo: "Pobreza cresce em São Paulo e cai no Brasil" (Folha de São Paulo, 29/01/06).

Tudo bem que estamos na cidade dos superlativos, mas os números me assustaram e transformaram meu café num momento indigesto. Diz a matéria: "Na capital paulista, 214 mil pessoas ultrapassaram a linha que as separava da pobreza. Na Grande São Paulo, o contingente de pobreza subiu, em apenas um ano, de 7,292 milhões para 7,506 milhões de pessoas, ou 41,6% da população, de um total de 18,2 milhões de habitantes". Dados do IETS (Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade), com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE. Para a coordenadora do estudo, pobreza, em São Paulo, corresponde a um rendimento familiar per capita de R$ 250,79. Dados que levaram mais de 200 mil pessoas para o subsolo social paulistano. E isso apenas nos últimos doze meses.

Em minha postagem anterior, já me dizia angustiado com os efeitos da desigualdade, cujas vítimas batem, literalmente, à nossa porta. Cidadãos sem cidadania, sem acesso a nada, somente ao descaso da sociedade. Pedia, em meu texto anterior, um descanso, um pequeno intervalo da miséria sem fim que encontro, seja indo ao trabalho, às compras, ao cinema, a qualquer lugar. Não há como não carregar o sentimento de culpa a todo instante, já que quase metade da cidade onde moro não vive com a dignidade necessária.

Faz tempo que atuo como em trabalhos voluntários, tenho muitos amigos que também estão nessa. Mas, cada notícia como a de hoje me traz a certeza de que não fazemos e talvez não cheguemos a fazer o suficiente para mudar essa situação.

A mudança não depende de voluntariado, o problema é crônico, globalizado, demasiado desproporcional frente a uma intervenção homeopática como essa. Depende de estratégias de guerra, como diz um amigo meu, todo dia batalhões na rua para lutar contra a fome, exércitos para revitalizar a educação, comandos estratégicos para mudar as diretrizes da economia global excludente. Guerra que nunca houve, talvez nunca haja.

Como disse, meu otimismo está na enfermaria. Após seu retorno, vou treiná-lo como se treina um atleta. Somente assim é possível ter forças suficientes para permanecer na batalha.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2006

Maisena pro meu irmão

Moro próximo à Rua Vergueiro, uma das mais movimentadas de São Paulo. Rua com movimento e estrutura de avenida. Cinco pistas, todas sempre cheias. Esses dias, enquanto aguardava meu pedido numa lanchonete da esquina, parei para contar o número de carros que transitavam. Coisa de maluco, eu sei, mas foi só para passar o tempo. E passou. Foram 103 carros no primeiro minuto, 96 no segundo. Fiz os cálculos, abaixando um pouco essa média, afinal as madrugadas são razoavelmente tranqüilas. Em um único dia, por volta de 100 mil veículos passam por aqui. Não é muito quando comparado às marginais. Mas é um número expressivo, sem dúvida.

Não só carros, mas muita gente circula por essa região. Agora à noite eu também circulei, fui até o hipermercado da esquina, aberto 24 horas, uma vantagem numa cidade onde o tempo parece escasso. Chegando próximo à primeira entrada, avistei várias crianças de rua, muitas aparentemente sozinhas, algumas com suas mães, raríssimos eram os pais. Quase sempre estão por ali, mas hoje pareciam mais, bem mais.

É inevitável adentrar o hipermercado sem levar algum pedido do grupo acrescentado à lista. Sempre colaboro, muitos clientes colaboram. Mesmo porque os pedidos são simples e quase sempre os mesmos: um pacote de macarrão ou uma lata de leite em pó. Ação emergencial, pouco eficiente, muito assistencialista, mas creio que necessária e inevitável. Simples de se resolver naquele momento. Mas nem um pouco simples de digerir, pois fica-se sempre com uma sensação de impotência diante de um problema que quase não muda e que ninguém resolve.

Hoje eu desviei dos excluídos. Dei meia volta. Faltou-me força, faltou-me coragem. Não queria ver esse tipo de sofrimento mais uma vez. Creio que uma das mães chegou a gritar o nome de um produto. Não sei se foi comigo, já estava me dirigindo à outra entrada, onde o movimento dos cidadãos da rua quase não existe. Fui me culpando pelo desvio, mas também tentando dar-me alguma razão, tentando convencer-me de que a culpa não é minha.

Minhas elocubrações duraram até alguém dizer: "Tio, compra um pacote de maisena pro meu irmão?". Pois é... não havia adiantado fugir, nem dar as costas. As vítimas da exclusão social estavam na outra entrada também. "Só maisena?", foi a única pergunta que consegui fazer. "Só, é pra fazer mingau pro meu irmão". "Ta bom, já trago".

Um pedido simples, um produto barato, mas que nos obriga a refletir sobre o caminho que nosso país decidiu percorrer. Tentei me distrair com a música ambiente do hipermercado que tenta trazer conforto aos clientes. Não surtiu efeito, baladinhas não combinam com exclusão social. Tentei, então, concentrar-me nos produtos, lembrei-me que maisena se escreve com s, não com z, como está na caixa. Também inútil, pois uma senhora passou comentando com outra garota: "Parece que aumentou o número de crianças de rua!... eu morro de pena". Enquanto a outra respondia: "Eu não tenho pena, já cansei de ajudar, acho que eles se aproveitam da gente!".

Vítimas reclamando de vítimas. De um lado, uma elite que se vê diante dos frutos de um descaso social histórico, sem saber como sair dessa. De outro, as verdadeiras vítimas, cuja única opção é "importunar" os clientes e lhes cobrar a dívida do descaso público, a única estratégia de sobrevivência dos excluídos naquele momento.

De minha parte, parei para falar com o gerente. Disse-lhe que precisamos nos mobilizar, que o hipermercado poderia fazer alguma coisa. Ele me disse que muitos clientes pensam o mesmo. Disse-lhe que nossa sociedade não pode conviver, de forma natural com uma desigualdade dessas. Ele concordou no ato: "- Absurdo mesmo!". Disse-lhe que poderíamos mobilizar ONGs da região, cobrar o poder público, acionar outras instâncias. Ele me disse que já tentaram, mas que poderíamos tentar de novo. Disse-lhe que iria pensar numa saída, conversar com amigos, procurar me mexer. Ele me apoiou e me desejou sorte.

Deixei a maisena com o rapaz, acrescida de um pacote de bolacha. Escrevo em péssimo estado, a culpa sentada ao meu lado, a frustração também, a raiva, o inconformismo, creio que meu comodismo, já não sei mais por onde sair. Queria uma folga disso tudo, queria não pensar, queria não encarar essa situação, queria um descanso da desigualdade.

Pensei nos carros, foi por isso que falei dos milhares de carros. Talvez um pedágio na minha esquina. Foi ali que contei 100 mil carros por dia. Talvez cobrar 1 real, 50 centavos de cada um. Se fossem 10 entavos, seriam 10 mil reais por dia, trezentos mil por mês. Acho que dinheiro suficiente para alimentar nossa gente. Pelo menos alimentar, depois veríamos o resto. Talvez pudéssemos construir alguns abrigos, dar alguma educação, alguma assistência. Os carros estão passando, vou tentar me distrair com eles... sei que não vou ter uma noite muito boa... quem sabe a saída está nos carros? Delírio, eu sei... só queria um pouco menos de miséria... uma folga para a angústia...

sábado, 21 de janeiro de 2006

Um pouco de Lumiar

Em setembro de 2005, tive a grata satisfação de conhecer a escola que não tive. Achei que esse momento não chegaria tão cedo. Na verdade, sempre achei apenas utopia de minha parte sonhar com um ambiente escolar democrático, onde todos - alunos, professores e diretores - pudessem ter uma participação ativa, crítica e democrática nas decisões pedagógicas e administrativas da escola. Por sorte, meus achismos não se confirmaram e a Lumiar está aí para provar que utopias não são tão etéreas assim.

Localizada em São Paulo, capital, a escola Lumiar é um projeto inovador em termos educacionais. Baseada na pedagogia democrática, tem como filosofia a participação de todos os seus membros nas orientações administrativas e pedagógicas que a norteiam. Das regras para o uso da sala de computadores à forma como cada disciplina será ensinada, da estrutura da grade curricular à escolha das atividades extra-curriculares, tudo é decidido em roda, cada criança com seu voto, cada professor com seu voto, cada diretor com seu voto, sem distinção de idade. E há crianças de 5 anos votando, é bom ressaltar! Exercício de gente grande para aqueles que um dia também serão. Nada mais natural, nada mais oportuno, nada mais democrático, nada mais educativo.

A notícia logo se espalhou e a crescente demanda fez com que a Lumiar abrisse suas portas uma vez por mês, para visitas monitoradas, a fim de receber educadores de todas as partes, cidadãos curiosos em conhecer o método. Foi assim que chegamos lá. Chegamos que eu digo sou eu e três grandes amigos: Andréa, Laércio e Fernando.

A Lumiar está instalada num casarão antigo, não muito grande. As paredes tiveram o reboco retirado, deixando os tijolos estão à mostra, o que combina com o estilo do casarão e cria um ambiente confortável. Mais do que isso, proporciona a sensação permanente de que algo está em construção e ainda existe a possibilidade de interferir nesse processo. Há frases de pensadores famosos escritas ou penduradas nas paredes. Instigam a reflexão e a crítica, incomodam na medida exata para que ninguém se acomode. Não há luxo, apenas cadeiras, carteiras e estantes convencionais, o suficiente para um cotidiano comum e funcional.

A visita começa com uma grande roda de curiosos, todos ouvindo, atentos, às palavras de um dos coordenadores. Perguntas surgem a todo momento: "como trabalham os conteúdos do vestibular?, "a pedagogia democrática funciona mesmo?", "como as crianças votam?", "os votos têm o mesmo peso?". Não resisti e também fiz minha pergunta: "os pais dos alunos não ficam preocupados com o fato dos filhos estudarem em um ambiente que não condiz com a realidade do mundo?". Pergunta chata, eu sei, mas fruto de minha percepção de que o mundo não é exatamente democrático como todos ali gostariam.

A resposta do coordenador veio direta: "Isso aqui também não é real? Não estamos num ambiente escolar democrático? Os valores que praticamos aqui dentro existem e também fazem parte do mundo! Podem não ser tão comuns, mas nossos alunos são preparados para entender que o mundo pode ser democrático dessa forma, como pode ser o avesso disso tudo. Nesse ponto, estarão mais preparados do que aqueles que se acostumaram a ver uma realidade só".

Não foi preciso dizer mais nada. Aquela era a escola onde queria ter estudado. Nessa impossibilidade, resta-me buscar esse propósito como educador. É o que tenho feito, tenho tentado ser uma Lumiar ambulante. Sei que não basta, mas é um exercício para o futuro, para os projetos que tenho em mente. Até lá, a Lumiar está aí para provar que as utopias são possíveis. É o que diz a missão da Escola: "Formar pessoas socialmente responsáveis, autônomas e felizes". O Brasil agradece.

sábado, 14 de janeiro de 2006

Um corpo no meio do caminho

Foram todos à praia para aproveitar mais um dia de calor. Foram crianças, suas mães, seus pais, foram os amigos. Brincaram na areia, no mar, voltaram à areia e ao mar novamente. Compraram água de côco, sorvete, biscoito. Descansaram, divertiram-se e relaxaram. Tudo isso com o cadáver que jazia na areia onde as pessoas só se divertem. O cadáver que ficou ali por horas a fio, como se estivesse tomando sol, bronzeando-se, à toa na vida.

É surreal, mas esse fato é verídico. Aconteceu ontem, na praia de Ipanema. Sexta-feira 13, por ironia do destino. Também é verídico o mau cheiro do corpo, assim como a tranqüilidade dos que passavam e o tempo de seis horas que o cadáver ficou exposto até ser retirado. Alguns famosos, como Cléo Pires, também estavam na praia ontem, conforme atesta a reportagem que deu origem a este texto.

O episódio virou notícia de primeira página da Folha de São Paulo de hoje, 14/01/2006. A matéria diz que o corpo não havia sido identificado ainda, pois estava com muitas marcas de violência. Mas deram um palpite sobre o itinerário pelo qual viera. Provavelmente lançado da favela do Vidigal, localizada próxima à Ipanema. Chegou nas ondas do descaso secular com nossa gente, da desigualdade que nos contaminou há muito tempo, da violência que nasce e cresce a cada dia. Mas, segundo a reportagem, a rotina de Ipanema pouco mudou. Diz o texto: "Apesar da cena inusitada e do mau cheiro causado pelo cadáver em decomposição, a rotina da praia quase não mudou. O trecho é freqüentado por jovens da zona sul. A atriz Cléo Pires estava ontem na praia. Um estudante que estava com os amigos comentou: "Vamos fazer o quê? As férias são curtas e temos que nos divertir de qualquer jeito".

É o que resta de uma sociedade que pouco se preza. Escrevi esses dias sobre isso, foi quase um presságio. Alertei que a elite brasileira surfava na onda da desigualdade. Mas, pelo jeito, ninguém se importou muito com o mau cheiro. Talvez sejam necessários mais corpos até tomarmos uma atitude. Até lá, fingimos não ver, fingimos que está tudo bem. Não está.
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Foto retirada da ilustração da reportagem "Verão Macabro", da versão online da Folha de SP de 14/01/2006.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

A elite que não se preza

Os sociólogos, educadores e pessoas conscientes desse maltratado Brasil costumam dizer que não há elite em nosso país. Pelo menos não no sentido mais nobre dessa palavra. Com essa assertiva, injusta em raros casos, procuram demonstrar que uma elite, para ser classificada como tal, não admitiria um país com tamanho grau de miséria e desigualdade social. Muito menos conviveria, de forma tão duradoura, com tamanhos despropósitos. Em recente estudo do Banco Mundial (Bird), o Brasil não só está entre os quatro países mais desiguais do mundo, como apresenta mecanismos para perpetuar esse quadro, conforme matéria publicada na Folha de São Paulo, em 21 de setembro de 2005.

Como se isso não bastasse, na mesma reportagem, o Bird destaca que a "armadilha da desigualdade" no Brasil consolida-se quando as elites econômica e política perpetuam-se no poder, criando mecanismos financeiros e legais para manter posições de comando e obter vantagens. Um exemplo clássico, no caso brasileiro, são os poderes legislativo e judiciário, que elevam com freqüência os próprios salários e se recusam a cortar benefícios que não vigoram em nenhum outro setor da sociedade. Outro exemplo é a falta de financiamentos em condições iguais para ricos e pobres. Um dos pilares do desenvolvimento justo de um país é a concessão de poderes econômicos e sociais para sua população menos favorecida economicamente. É o que chamam de "eqüidade social", ou seja, chances iguais a todos, independentemente de cor, raça ou nível social. Como se tudo isso não bastasse, o Brasil possui uma das cargas tributárias mais altas do mundo. Hoje, ela supera 36% do PIB (Produto Interno Bruto), contra 12% no México, por exemplo. Isso significa que pagamos caro, muito caro, para um Estado que insiste em jogar pelo ralo os recursos que seriam para nosso bem estar.

Elite que se preza não hesitaria em chacoalhar governos, movimentos sociais e a si mesma pela melhora desse quadro social. Elite, com E maiúsculo, preza tanto seu bem estar quanto o bem estar alheio. Sem um, o outro não existe, nem pode. A não ser atrás das cercas elétricas, de condomínios fechados, de carros blindados e seguranças particulares. Mas isso está mais para estado de mal-estar social, pois representam a auto-exclusão por parte dos mais privilegiados. Parece que, nem de longe, a elite brasileira merece ser chamada como tal. Há exceções, como as importantes lideranças que estão à frente de movimentos como a responsabilidade social corporativa, além de inúmeras pessoas que atuam no terceiro setor brasileiro. Mas esses ainda nadam contra a corrente, pois a atual maré é regulada pelos inconseqüentes sociais desse país. Pessoas que surfam nas ondas da desigualdade, curtindo como podem. Só não percebem que essa onda está nos levando para o esgoto. Esporte radical. Um dos prazeres de nossa elite.

Foto retirada de http://www.aula7.org/EPPaz.htm em 12/01/2005.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2006

A escola que não tive

"Fomos maus alunos" é o título de um livro escrito por Gilberto Dimenstein e Rubem Alves. Um jornalista de renome e um acadêmico/filósofo idem. Sentaram-se para conversar sobre seus descaminhos escolares e publicaram um livro sobre a escola que não tiveram. Ou melhor, tiveram, mas seria melhor se não a tivessem tido. O livro é de 2003. Comprei-o mais pelo título, para ter na estante minha carta de alforria, um atestado de que o problema não foi só comigo. Já havia lido resenhas e conhecia seu conteúdo por cima.

Comecei a lê-lo hoje, 5 de janeiro de 2006. Talvez nem precisasse fazer a leitura, pois trago comigo, assim como qualquer aluno das décadas de 70 e 80, o dissabor da escola que tive. Antes de continuar a leitura do livro, decidi elaborar breves linhas sobre minhas lembranças escolares. Mero exercício de recordação pedagógica, talvez não das melhores, mas um importante exercício para quem optou por trabalhar com educação.

A escola que tive ensinou-me história através de questionários decorados, não de discussões sobre os significados reais dos fatos e de suas possíveis manipulações e interpretações ideológicas. Ensinou-me química através de fórmulas decoradas, as quais nunca consegui transpor para meu cotidiano quimicamente construído. Ensinou-me biologia através de uma enxurrada de terminologias decoradas. A lousa chegava a ficar interessante com tantos desenhos de estruturas celulares, mas a decoreba pouco esclarecia sobre o mundo biológico que me rodeava.

A escola que tive ensinou-me física através de fórmulas decoradas, mas nunca fui motivado a compreender por que o tempo às vezes parava (nas aulas) e às vezes corria (nas brincadeiras). Ensinou-me matemática através de equações prontas, e essas judiaram de mim até não poderem mais. Professores e professoras particulares entraram na jogada. Pouco adiantou, sempre passei raspando, quase ficando, sem que qualquer sentimento maior fosse despertado pelos números. Ensinou-me educação artística obrigando-me a pintar figuras com as cores que a professora ordenava, não com as cores que minha imaginação pedia. Quase nada falaram sobre os caminhos da arte pelo mundo, das obras, pintores e escultores famosos.

A escola que tive ensinou-me educação moral e cívica, nome bonito para uma manipulação invisível que doutrinava nossas mentes a mando da ditadura então instalada. Tentou-me ensinar educação física, mas, por sorte do destino, fui dispensado das aulas por ser atleta de natação. Extrema sorte, pois foi nadando que encontrei minhas grandes amizades, inúmeros de meus valores e até mesmo minha profissão. Mas soube que a educação física da escola também fizera suas vítimas, pessoas que nunca mais voltaram à prática de atividade física, pois a contínua experiência de exclusão nas aulas (10 jogavam, 30 ficavam fora) apenas desestimulava a prática saudável do movimento.

Minha escola ensinou-me português através de regras gramaticais decoradas, estruturas frasais coordenativas e subordinativas repetidas à exaustão, as quais trago em minha memória até hoje. Ajudou-me muito ter um pai professor de português e uma mãe deveras exigente. Que nos faziam decorar, é verdade, mas também nos estimulavam a leitura. Foram as leituras que nos salvaram, a mim e a meus irmãos, e nos despertaram para a beleza de uma boa escrita, de uma frase corretamente dita, para a curiosidade constante pelo mundo das letras.

Os professores que tive, até hoje não consigo julgar se eram algozes ou vítimas daquele sistema. Quero acreditar na segunda opção, pois a maioria chegava às aulas com o ânimo do réu que caminha para a execução. Postura de vítima, sem dúvida. Faziam da chamada um momento interminável. Cada minuto ceifado era importante para disfarçar o desânimo que enfrentavam. Por outro lado, aqueles mais dispostos vinham com a disposição do carrasco. E muitas vezes foram. Mas, até mesmo esses teriam nos ensinado de forma mais atraente se pudessem, se os permitissem. Dos professores, lembro-me também do escárnio que tínhamos com alguns. Aí os papéis invertiam-se, também tínhamos nosso momento de algozes. Creio que vários chegaram a fazer terapia, o que não seria pouco diante das atitudes perversas de nosso descontentamento infanto-juvenil.

Por outro lado, a escola que não tive teria ensinado-me a importância da participação de cada aluno na construção de um ambiente escolar mais estimulante e mais democrático. A escola que não tive teria estimulado seus futuros protagonistas sociais a construir uma sociedade mais justa em todos os sentidos. A escola que não tive não exitaria em conscientizar seus alunos sobre a importância da igualdade social para o bem estar do próximo e do próprio mundo. A escola que não tive teria ensinado-me todas as matérias que listei de forma mais atraente, sem jogar nos alunos a culpa pelo desinteresse por uma pedagogia nitidamente deturpada. A escola que não tive teria ensinado sociologia e filosofia a alunos e professores, teria informado a todos sobre a pedagogia de Paulo Freire, teria nos dito sobre a existência de Summerhill. Encontrei-os depois de adulto, lamentando por não tê-los conhecido anteriormente. A escola que não tive teria professores dispostos, salários decentes, alunos críticos e participativos. Haveria, fundamentalmente, respeito entre todos.

A escola que não tive não me foi dada de propósito. Não seria interessante formar cidadãos tão conscientes assim. Não é até hoje. Paciência, estou aprendendo agora, espero que muitos também estejam. Poderíamos ter uma sociedade melhor hoje em dia, poderíamos estar um passo à frente, não fosse tanto tempo perdido com aulas insossas. Resta-nor ir atrás do prejuízo, pois o tempo ficou mais curto. Não sei se é suficiente para mudar as graves situações sociais e ambientais que transbordaram nos últimos anos. Correr é a opção que nos resta. Só não nos esqueçamos da educação crítica nessa corrida, pois o tempo nos devolverá a omissão do presente. Lei da ação e reação. Uma das poucas que aprendi em física.
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Nota: A construção verbal correta seria "minha escola ter-me-ia ensinado", sempre no futuro do pretérito.  Mas achei que a leitura flui mais com "minha escola teria ensinado-me".
Ilustração retirada de http://www.universiabrasil.net/preuniversitario/images/unesp/pedagogia.jpg em 07/01/2006

quarta-feira, 4 de janeiro de 2006

A excomunhão de Bush

Que o cara é o supra sumo da insensatez humana, isso todos já sabem. Que seus assessores diretos sejam o avesso da inteligência e da tolerância, também não é novidade. Que inúmeros políticos escolados pelo Tio Sam são ditadores de plantão, também não chega a espantar. Mas a náusea continua inevitável em alguns momentos. Como, por exemplo, ao assistir a uma reportagem sobre George Bush e seu bando comemorando o Dia de Ação de Graças, festividade religiosa típica nos Estados Unidos.

Fica inevitável a pergunta: ação de Graças a quem? Qual o motivo da comemoração? Agradecer algo a Deus? Você creem em Deus?

Mr. Bush e sua quadrilha não deveriam ter permissão para comemorar qualquer data religiosa, pois são os protagonistas do sofrimento de milhares de pessoas mundo afora. Não exitam em invadir países, em criar guerras, em fortalecer grupos extremistas. Mesmo assim, têm permissão para celebrar uma data religiosa, onde a lembrança é sobre fazer o bem ao próximo. Fazem isso porque nenhuma instituição religiosa nesse mundo foi capaz de excomungá-los. Talvez não adiantasse muito, a própria ONU não conseguiu detê-los quando invadiram o Iraque sem autorização, em 2003.

Esperar a excomunhão de um político é querer demais, eu sei. Muitas das religiões deveriam excomungar a si próprias, isso é fato. Muitas estão infestadas por pessoas sem ética, sem moral, sem escrúpulos. Mas isso não importa. A excomunhão de Bush e de seus assessores malucos já foi dada... pois suas ações traíram a ética, o respeito ao próximo, a tolerância, a dignidade. São e serão sempre lembrados por traírem a vida. Pena que Mr. Bush não perceba isso.

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Notas:
1. Pensado a partir do texto "Porque Bush é presidente daquele botequim", do blog de Carmen Fernandino: http://www.resquiciosdodia.blogspot.com

2.. Ilustração retirada de
http://www.rel-uita.org/sindicatos/campesinos_contra_bush.htm em 05/01/2006.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2006

Deus é um gene?

Milhões juram que Ele existe. Milhões conseguem imaginá-lo somente como um senhor com cabelos grisalhos e uma longa. Porém, a crença em Deus pode ser uma peça pregada por seus genes.

Obviamente, a ciência não pretende destronar Deus com sua descoberta, apenas mostrar que o ser humano é mais complexo do que parece. A existência de um gene ligado à fé é uma suposição bastante considerada pela ciência, isso desde a década de 1960.

Foi uma britânica quem primeiro levantou essa hipótese. Jane Goodall, famosa por estudar o comportamento de chimpanzés na Tanzânia, país da África oriental. A partir de suas numerosas observações, descobriu que essa espécie agia de maneira bastante estranha quando estavam, por exemplo, diante de uma simples cachoeira, demonstrando um comportamento inequívoco de reverência. Alguns chimpanzés permaneciam sentados em uma rocha diante da queda d'água, como se estivessem hipnotizados. Outros ficavam sob a queda d'água por longos períodos, até 50 minutos, quando o ato de se molhar sequer fazia parte dos hábitos desses animais.

Uma das conclusões da pesquisadora é que esse comportamento representaria um traço de uma religiosidade primitiva. Em outras palavras, nossos parentes, assim como a espécie humana, carregam um gene que vem percorrendo nosso DNA e nos fazendo acreditar num ser superior.

Edward O. Wilson, um dos pioneiros da sociobiologia, ciência que busca compreender o comportamento humano através de padrões biológicos, considerou que nossa predisposição para acreditar em um ser superior pode ser apenas parte da postura de submissão característica do mundo animal. Observando macacos rhesus (os mesmos que deram origem ao Rh do sangue), constatou que o macho dominante dessa espécie caminha com a cabeça e cauda erguidas, enquanto os dominados mantêm cabeça e cauda baixas, tanto em sinal de reverência quanto em troca de proteção, abrigo e comida. Portanto, a tendência de se submeter a um ser superior pode ser uma herança evolutiva que vem se reforçando em nosso DNA para que acreditemos numa autoridade superior ou num Deus.

Na década de 1990, o radiologista Andrew Newberg e o psiquiatra Eugene D'Aquili (já falecido), resolveram investigar um pouco mais os efeitos dessa determinação genética. Buscaram, diretamente no cérebro, a origem da experiência religiosa do ser humano. Utilizando aparelhos de tomografia, analisaram as áreas cerebrais de freiras franciscanas e monges budistas durante períodos de oração e meditação. A pesquisa indicou uma diminuição de atividade elétrica no lobo parietal superior desse grupo, região responsável por nossa orientação espaço-temporal, ou seja, por dizer onde termina nosso corpo e onde começa o mundo. Sem a ativação dessa área, surge a sensação de que se está unido a um todo, sensação muitas vezes descritas como uma aproximação ou encontro com Deus. Mas, para a ciência, apenas uma sensação.

Logicamente, a discussão não é nada trivial e talvez nem tenha um fim. Mas a ciência está aí e não vai parar de investigar os fenômenos neurológicos de nossa espécie. Isso significa que, um dia, talvez venhamos a aceitar a experiência da fé apenas como expressão de nosso DNA.
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Inspirado em diversas conversas e reflexões com amigos, amigas e na recente reportagem "Deus existe?" (Revista Superinteressante, dez. 2005). Referências utilizadas na matéria da Revista: Miles, Jack. Deus, uma biografia. Companhia das Letras, 2002. Dawkins, Richard. Desvendando o arco-íris. Companhia das Letras, 2000. Wilson, Edward O. Consiliência. Editora Campus, 1999. Sagan, Carl. O romance da ciência. Francisco Alves, 1982. Newberg, Andrew; D'Aquili, Eugene. Why God won't go away. Ballantine Books, 1982. Behe, Michael. A caixa-preta de Darwin. Jorge Zahar Editor, 1997.
Ilustração: montagem em photoshop a partir das imagens encontradas em http://www.freedesktopwallpapers.net/art/michelangelo-creation.jpg e http://www.alzheimers.org/unraveling/images/large/DNA-HIGH.jpg