sábado, 11 de março de 2006

Liberdade condicional

Sempre gostei do som do U2, principalmente das letras de suas músicas, mas nunca levantei a hipótese de batalhar por um ingresso para o show do grupo em terras brasileiras. Tenho poucos gostos musicais, já não idolatro bandas ou cantores e nunca faria plantão para conseguir um lugar ao sol, como fizeram os fãs brasileiros de Bono "Vox".

Também tenho uma visão crítica (para não dizer ranzinza), sobre mega espetáculos regados a milhões, principalmente num cenário como o Brasil, onde faltam tostões para o pão diário de milhares de cidadãos. Nada contra os shows em si.

É o contraste que me incomoda, esse choque de nossa cotidiana pobreza com um momento único de gigantesco investimento financeiro. Neurose de quem vive num dos países mais desiguais do mundo. Também sentimento de culpa pela convivência incessante com os excluídos que vagam pelas ruas de São Paulo.

Querendo ou não, já se tornou inevitável pensar naquilo que poderia ser feito com os milhões de reais que a mídia investe em duas poucas horas de êxtase. Enfim, não sei se foi por minha declarada falta de idolatria, talvez por minha postura de "isso não é pra mim", acabei ganhando, de última hora, um ingresso para o show do U2. Veio pelas mãos de um amigo, por sua vez amigo de um empresário envolvido com os patrocínios do show. Pela reação dos que souberam, eu havia acabado de acertar na loteria, tamanha tinha sido a disputa pelos ingressos.

Durante o show entendi o porquê do delírio coletivo. Uma tecnologia de palco inédita no mundo, uma banda de rock politicamente correta, um vocalista engajado em causas humanitárias e um estádio no bairro mais nobre de São Paulo. Para completar, uma noite de calor e céu limpo, pouco comum nessa poluída metrópole.

Há pouco tempo pedi, em outro texto deste blog, um distanciamento temporário da angústia provocada pela miséria das ruas de São Paulo. Pedido feito, pedido aceito, pelo menos por duas horas foi me dada a chance de subir à tona, antes de voltar à realidade de exclusão. Durante essas duas horas, conforme as mensagens humanitárias ganhavam o super palco tecnológico do U2, a sensação era de que o mundo poderia dar certo. Ali, naquele instante, vendo aquela multidão sensibilizar-se e apoiar as causas do grupo, até parecia fácil mudar a realidade. Tive a sensação de que era só sair dali e começar a batalha. Ilha da fantasia, eu sei, mas foi bom viver assim por alguns instantes.

Se muitos curtiram, outros partiram para o ataque. Li críticas ácidas sobre a forma como Bono e o U2 tratam os problemas do mundo. Os mais mau-humorados dizem que o grupo mistura alhos com bugalhos, ou seja, o problema da fome com as desavenças religiosas do oriente médio, a excludente economia mundial com os ideais etéreos de uma humanidade sem direita e esquerda, sem elite e pobreza.

Da forma como entendo, música, arte e cultura estão aí para mostrar como o mundo deveria ser idealmente, não para apresentar metodologias de como chegar até lá. Outros disseram que Bono equivocou-se ao procurar Lula para uma conversa. Além do encontro oficial, Bono também poderia ter se encontrado Zilda Arns, da Pastoral da Criança, ou Oded Grajew, do Instituto Ethos, duas lideranças importantes no campo de nossas ações sociais. 

No final das contas, tive minhas duas horas de folga. Seria bom viver sempre com essa sensação, mas a saída do show não deixou dúvidas de que o benefício de minha liberdade era por pouco tempo. Lá estavam as crianças de rua, os ambulantes desesperados, os excluídos pedindo mais um pouco de socorro. Começava a voltar à prisão da desigualdade.

A ilusão foi ficando para trás, enquanto caminhávamos pelas ruas do Morumbi. Durante a volta ao cárcere, foi estranho notar uma grande quantidade de casas com a placa de "aluga-se" pelas ruas do bairro, que já foi o mais luxuoso de São Paulo. Dizem que é por causa da insegurança crescente. Os moradores estão abandonando as mansões e mudando-se para prédios ultra seguros. Já disse que isso é atitude de elite que não se preza. Comecei a pensar em como estará o bairro do Morumbi no futuro. Parei de pensar no instante seguinte. Talvez não haja futuro... nem para mim, muito menos para os excluídos.
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Meu agradecimento especial ao amigo Paulo A. Cruz, que conseguiu o convite gratuito para o show.

4 comentários:

  1. Outro dia escrevi um post sobre minha ida ao Orgulho e Preconceito, que foi um filme que se prestou justamente a me fazer escapar da realidade por umas horas. Isso é vital.

    Paulo Freire dizia que é imprescindível que quem esteja na luta procure preservar a própria vida. Concordo e digo mais, além de preservar a própria vida, é preciso também preservar a sanidade mental. Essas fugas permitem isso. Acho que o segredo é lutar e se recolher às vezes - o que não significa recuar!

    Os espíritos inconformados também precisam de descanso...

    Boa luta e bom descanso!

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