sábado, 27 de outubro de 2007

A criança, o dromedário, o leão e os cordeiros

Desde crianças, escutamos e lemos fábulas repletas de metáforas sobre a condição humana. Muitas dessas estórias tendem a incutir valores nem sempre positivos nas desavisadas mentes infantis. Também existem fábulas que estimulam o senso crítico e a criatividade, mas essas pouco são contadas. A estória a seguir é uma delas...

Essa fábula passa-se num distante reino, coincidentemente chamado Planeta Terra. Nesse reino, as crianças eram tratadas de forma bastante peculiar. Mal ensaiavam seus primeiros passos e a palavra mais importante que aprendiam era "NÃO".

No início de suas vidas ainda vibrantes, quase nenhuma importância davam ao significado daquele som. Porém, em apenas alguns anos, a repetição constante fazia com que todas as crianças aprendessem o significado do NÃO. Nessa fase, formava-se uma pequena corcova nas delicadas costas daqueles pequenos seres. As crianças mal percebiam a tímida metamorfose, mas seus pais - e toda a sociedade - já olhavam com orgulho aquela transformação. Era o sinal de que a situação corria conforme planejada.

Poucos anos após o início desse processo, a pequena corcova, agora com tamanho considerável, começava a incomodar. Nessa fase, quase todas as crianças freqüentavam escolas apropriadas para reforçar essa transformação. Também já recebiam os primeiros ensinamentos de suas futuras religiões, além de outros códigos de moral e conduta.

Havia muitos tipos de escolas e religiões no Planeta Terra, quase todas dispostas a aumentar o tamanho da corcova. A receita para aumentá-la era simples: doses rígidas de educação, quantidades ínfimas de questionamento, muitas pitadas de rigorosos valores religiosos, sempre acompanhadas de ingredientes como moral e culpa. Para completar, onde quer que estivessem, as crianças eram cuidadosamente vigiadas por algum sentinela de plantão. Brincadeiras e iniciativas eram podadas aqui e ali, sempre interrompidas com a palavra mágica "NÃO".

Quando chegavam à adolescência, as crianças já não mais se pareciam com seres humanos. Todas elas haviam se transformado em dromedários, mutação provocada pelo aprendizado das regras sociais, da rígida educação, da moral religiosa, da culpa e, logicamente, pelos anos de repetivivos "NÃOS". Somente grandes corcovas poderiam suportar toda essa carga, por isso as crianças assumiam a forma de dromedários. A essa altura, muitos sequer percebiam o peso sobre suas costas, de tão habituados a ouvir as verdades que lhes eram impostas. Por sorte, era justamente nessa fase que alguns dromedários descobriam uma palavra quase nunca pronunciada naquele planeta: o "SIM". Poucos haviam aprendido a utilizá-la quando crianças, mas parecia algo instintivo para alguns.

Conforme um ou outro dromedário repetia o "SIM", iniciava-se uma nova transformação. Seus corpos modificavam-se brutalmente e a pesada corcova desaparecia. Passavam, então, a ser comom leões. Pareciam muito mais ameaçadores nessa nova forma, mas estavam apenas mais confiantes e conscientes da força que um dia quase fora apagada de suas mentes e de seus desejos.

Os leões, então, passavam a combater cada "NÃO" com sonoros e repetitivos "SIM". Não era fácil para pais, educadores e religiosos aceitarem aquela palavra de desafio, afinal, o método "NÃO" prevalecia há muito tempo no Planeta Terra. Era nessa fase que ocorriam duros embates entre os leões e aqueles que diziam "NÃO".

Apesar de serem fortes, milhares de leões sofriam com os preconceitos e discriminações que lhes eram impostos durante esse período. Para uma sociedade que esperava outro tipo de mudança, discriminar os diferentes era a única opção. Faziam isso porque se sentiam ameaçados.

Para que a ameaça não se concretizasse, muitos leões eram colocados em clínicas de recuperação ou mesmo acusados de serem falsos leões. Muitos eram excluídos da sociedade, alguns eram literalmente abatidos, mas muitos acabavam assumindo posições onde podiam lutar contra as regras.

Nessa fábula, havia uma última e trágica transformação, que atingia os dromedários que não haviam seguido os passos dos leões. Essa transformação ocorria quando os dromedários perdiam toda e qualquer iniciativa de pronunciar um único e tímido "SIM". Após anos e anos de intensos "NÃOs", só lhes restava um destino: transformavam-se em cordeiros e essa era a condição definitiva de todos.

Quando chegavam a essa fase, apenas sabiam repetir o que seus pais, seus professores, religiosos e outros velhos cordeiros lhes haviam ensinado. Pior que isso. Passavam a perseguir os poucos leões que restavam naquele planeta, atacando-os com os intensos "NÃOS" finalmente incorporados.

Os leões, apesar de estarem em menor número, já não se incomodavam mais com aquilo. Haviam aprendido o difícil caminho do "SIM" e era isso que importava. Dessa condição, passariam a planejar a transformação de todos os cordeiros do Planeta Terra. Tinham consciência de que seria um longo processo. Mesmo assim, preferiam acreditar que isso era, "SIM", possível de se alcançar.

Inspirado na fábula que ilustra o livro "Assim falou Zaratustra", de Friedrich Niestzsch.
Imagem: representação gráfica do signo de Leão - The ProSim Project



domingo, 10 de junho de 2007

Reativando...

7 de agosto de 2006. Foi quando escrevi minha última postagem para este esquecido blog. Dez meses depois, decidi colocá-lo na ativa novamente.

Faz falta escrever, a gente perde o jeito, perde as palavras, perde a melhor forma de estruturar uma frase... mas vou recuperando isso aos poucos. Quero aproveitar o pique para relatar, ainda que em breves flashes, o que ocorreu nesse período.

Parte 1 - Em 9 de agosto do ano passado tive a sensação de perder alguém sem ter perdido. É estranho o sentimento que uma grande distância geográfica pode nos provocar. O chão desaparece por algum tempo e o próprio tempo adquire outra dimensão. Muito mais lenta, por sinal. O silêncio, que não era ouvido, começa a se fazer presente. O presente, que não era sentido, passa a durar cada eterno segundo. As noites, antes pouco vistas, passam a ser como o dia. Aprendi que há uma finalidade nesse processo... ajuda-nos a mobilizar forças que permaneciam latentes e alavancar planos não planejados. Coloca-nos num estado de prontidão onde toda a energia converge para um ponto que sequer existia. Passa-se a refletir como nunca e até mesmo a conversar com aqueles que apenas aguardavam o início do diálogo. Fase de instrospecção pura, necessária e dolorida. Tão dolorida que chega a deixar marcas físicas, algumas difíceis de se curar.

Parte 2 - Floyd Rowry é um morador da cidade de São Francisco, Califórnia. Conhecio-o quando ele tentava vender jornais para apoiar o movimento dos sem-teto americanos. Parei para comprar o Street Spirit e a conversa se estendeu. A situação dos homeless é um contraste gritante para aqueles que andam pelas ruas endinheiradas dos Estados Unidos. Floyd era um cara esclarecido e consciente sobre seu papel e sobre sua tragédia social naquele momento. Não estava na rua à toa, problemas familiares e econômicos lá o colocaram. Não estava faminto, como é comum nos brasileiros abandonados à míngua. E tinha a clara noção de que Tio Sam e companhia poderiam resolver aquela situação, se realmente quisessem. Não só a situação do Floyd, mas dos milhares de homeless que perambulavam pela Market Street e outras tantas ruas dos EUA. Floyd tornou-se uma boa companhia. Fizemos um trato: ele me dava algumas aulas de inglês "de rua" e eu lhe pagava o que podia. Em nossas conversas, expliquei-lhe o motivo de minha inesperada ida aos EUA. Por coincidência, ambos estávamos ali por razões bem semelhantes. Floyd foi um grande amigo durante um bom tempo. Boas conversas, boas risadas, alguns choros e vários questionamentos, ambos tentando compreender as peças que a existência nos prega sem aviso prévio.

Parte 3: Cláudia também estava lá para me apoiar. Aliás, seu apoio começou bem antes de minha partida. Amável, inteligente e dinâmica, muito dinâmica. Do tipo que toma decisões rápidas e acertadas, sem pensar muito. Aliás, nela não há aquela linha de separação entre o pensamento e a decisão, tudo acontece ao mesmo tempo, sem inseguranças e meio termos. Uma pessoa rara, que equilibra intelectualidade e espiritualidade com extrema clareza. Ajudou-me muito, clareou meus pensamentos, apoiou meus projetos, incentivou minhas atitudes, indicou a direção que deveria seguir em terras ainda desconhecidas. Assim como Floyd, foi um tremendo suporte emocional, que surgiu na hora certa e distanciou-se no momento exato. Entrou e saiu de cena temporariamente, cumprindo à risca seu papel.

Parte 4: Creio que o Evandro desvendou o segredo das mulheres: "- Quando elas disserem sim, é não. Quando elas disserem não, é sim". Soou engraçado naquele momento, mas na eterna tentativa de entendimento entre os sexos, essa simples verdade parece ser lei. Já estava em Berkeley nesse momento e foi meu caro amigo o responsável por clarear algumas angústias que insistiam em me acompanhar. Grande figura, humor totalmente à prova de bala, alto astral até quando as coisas nao iam tão bem. Orientador perfeito para quem busca boas dicas de eletrônicos e similares em qualquer lugar do mundo. Fotógrafo profissional, ensinou-me alguns truques para se fazer mágica no momento de tirar uma foto. Estou treinando até hoje e os resultados têm melhorado. Elisa também estava lá, assim como Nitti, Alex, Patrícia, Mr. Greg e Tammy. Todos grandes amigos, souberam ser solidários nos momentos mais precisos.

Parte 5: Sherry e Victor formam um casal especial e moram numa bela casa nos subúrbios de Berkeley. Foi ali que passei o final de dezembro e o início de janeiro, ajudando a cuidar das coisas enquanto estavam ausentes. Dali partia, diariamente, para meus passeios de bicicleta, que cruzavam boa parte de Berkeley, cortavam a universidade e, invariavelmente, acabavam na casa da Delaware Street, o ponto de parada mais aguardado do dia.

Parte 6: Se não fosse por uma única pessoa, isso tudo sequer teria começado. Do inesperado e-mail que nunca deveria ter enviado, da visita a Yosemite até a correria de última hora no aeroporto, tudo passou pela motivação de estar próximo a ela. Os incansáveis jantares no restaurante tailandês, os numerosos cafés e cookies, os diversos passeios, natal, ano novo... cada dia tinha sua participação, ainda que fosse apenas em pensamento. Desde agosto de 2006, quando tudo teve início, meu norte foi invertido. Passei a agir mais instintivamente, deixando a tão praticada racionalidade de lado. Repensei hábitos arraigados, reformulei planos, propus decisões bastante sérias. Não foi fácil explicar-lhe em que ponto iniciou-se toda essa avalanche, só posso afirmar que realmente aconteceu e que foi muito sincera. Hoje, olhando pelo retrovisor, vejo que meu instinto guiou esse processo em velocidade máxima, sem me dar qualquer oportunidade de acionar o freio. Não posso dizer que a empreitada deu certo ou errado, mesmo porque a situação não se dividiu entre o sim e o não. Só posso afirmar que tudo foi apenas diferente do que havia sido até aquele momento.

Final: Estou cá novamente, com as lições literalmente incorporadas. No momento, preocupo-me em fazer alguns pequenos reparos na máquina de órgãos e ossos que se exauriu completamente. Preciso acumular energias para levar o Pan adiante. Dez meses agitadíssimos, sem dúvida. E ainda sinto que a melhor parte está por vir...