terça-feira, 29 de março de 2016

Vida Súbita (1) - Ontem

Ontem eu criei este blog. Isso foi em 2005. Foi ontem.
Ontem publiquei o último texto por aqui. Blog parado desde 2012. Parado desde ontem.
Ontem fui nadador. Treinei quase todos os dias da década de 80. Treinei ontem.
Ontem continuei treinando. Também treinei toda a década de 90. Década de ontem.
Ontem treinei mais ainda. Nadei de 2000 até 2006. Nadei um pouco mais ontem.

Ontem minha irmã, eu e meus irmãos nascemos. 1968 a 1973. Nascemos ontem.
Ontem foi meu primeiro dia na escola. 1975. Foi ontem.
Ontem integrei uma fantástica equipe de natação. De novo os anos 80.
Ontem eu me apaixonei, beijei, namorei. Ontem foi muito bom.
Ontem me apaixonei de novo, beijei de novo, namorei de novo. Ontem foi bom novamente.

Ontem ingressei na universidade, me formei, me pós-graduei. Ontem estudei muito.
Ontem fui trabalhar, pedi demissão, fui demitido, conheci chefes babacas. Tudo Ontem.
Ontem mudei de país, fui aprender coisas novas. Inglaterra, 2012. Ontem.
Ontem mudei-me para Espanha, vivi 1 ano em Barcelona. 2015. Ontem.
Ontem errei, acertei, me frustrei, fui medroso, corajoso, tive fé, fui ateu.
Ontem passou rápido.

Hoje é 29 de março de 2015. Domingo. Pouco após as 23 horas.
Hoje meu coração bate de forma estranha. Há algo bem errado comigo.
Hoje estou num pronto-socorro. Hospital Dante Pazzanese, São Paulo.
Hoje estou preocupado, tenso, não sei o que está acontecendo.
Hoje fui internado às pressas, minha vida está por um fio.

Hoje os médicos me monitoram a cada segundo. Dizem que tenho uma arritmia incomum.
Hoje meu coração bate errado demais. Taquicardia ventricular. Risco de vida.
Hoje me injetam um forte medicamento. Adenosina. É o choque químico.
Hoje o choque químico não reverte a arritmia. A sensação é de quase morte.
Hoje a tensão aumentou na emergência. Entendo que tudo pode acabar aqui.

Hoje começo a perder a consciência. Fibrilação cardíaca. Minhas mãos esfriam.
Hoje trazem a máquina de choque para meu lado. Minha visão escurece.
Hoje médicos e enfermeiras aproximam-se de mim. "Prepara o choque!", diz o chefe.
Hoje tenho receio de que não haja amanhã.

Agora meu coração quase parou. Senti meu último "agora" na vida.
Agora meu coração respondeu sozinho. Voltou a bater.
Agora estou recobrando a consciência, vejo-me ligado a vários aparelhos.
Agora os médicos me dizem que meu quadro é grave.
No jargão médico, acabo de ter uma morte súbita abortada.

Morte. Súbita. Abortada.

É por causa dessas 3 palavras que estou escrevendo.
Estranho saber que evitaram minha morte.
Isso certamente muda o conceito de vida dentro de alguém.
Meu conceito também mudou. E continua mudando.
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Acredite: não é a morte que é súbita. É a vida. Nota-se isso no momento em que a morte deixa de ser teoria e quase vira prática. Hoje eu vivi isso. Hoje não, isso tudo ocorreu em março de 2015. Foi ontem.

Descobri que a possibilidade de morrer resume o tempo a 3 dimensões: ontem, hoje e agora. Não há o daqui a pouco, nem o segundo seguinte, muito menos o amanhã. Vem daí aquela crença de que vemos um filme na hora da morte. Não é um filme. É apenas a forma como o cérebro organiza nossas informações: tudo que já vivemos condensa-se no 'ontem', um pequeno ponto na memória. O 'hoje' é um ponto menor ainda. O 'agora' é o menor de todos. A vida, portanto, é uma reticências: 3 pontos seguidos. Só. Por isso é tão fácil visualizá-la num último relance.

Dentro de minha reticências já fui atleta e já pratiquei todo tipo de atividade física. Natação foi quase uma profissão para mim. Treinei tudo que me foi permitido na infância, na adolescência e quando adulto. Cheguei a me viciar em prática esportiva. Deixava compromissos sociais e familiares para treinar. Fui um nadador mediano, disputava campeonatos brasileiros, mas nunca cheguei ao alto nível. Não é preciso, porém, chegar à elite para saber que a vida de atleta exige extrema dedicação física, emocional, intelectual e de tudo e todos que nos cercam.

Minha vida de nadador acaba de entrar na categoria 'ontem'. Hoje estou hospitalizado. Acabam de descobrir que tenho uma doença cardíaca rara, incurável e progressiva.

Rara. Incurável. Progressiva.

Ok... tudo isso parece bem ruim, eu sei. Deveria ser proibido juntar essas 3 palavras numa doença só. Mal terminei a primeira página e já há meia dúzia de palavras que me assustam. Contudo, há aspectos positivos no universo das doenças, algo difícil de aceitar num primeiro momento.

Em primeiro lugar, é preciso entender que o diagnóstico de uma doença não é algo necessariamente negativo. Tá... não é legal... eu sei... mas sem um diagnóstico, por melhor ou pior que seja, as chances de combater uma enfermidade seriam bastante reduzidas. Aceitar uma enfermidade não é fácil, mas desconhecê-la é muito pior e muito mais arriscado.

Em segundo lugar, a ideia de morte nos coloca em contato com aquilo que é prioridade em nossas vidas. Obviamente, todos nós conhecemos nossas prioridades e planos, mas vivemos como se houvesse um longo futuro para realizá-los. Se temos algo como prioridade e adiamos sua realização, então pressupomos que o futuro está garantido. Pode ser que não esteja.

"Vida Súbita" pretende ser uma série de textos sobre nossa condição de seres do "ontem, hoje e agora". Isso não significa negar a esperança que cada um tem de futuro, mas estimular pessoas a trazerem suas prioridades para o momento presente.

Não tenho o objetivo de escrever sobre auto-ajuda, sobre como realizar hoje tudo aquilo que alguém sonha em vida. Não sou candidato a guru. A ideia principal é usar minha atual condição de vida para refletir sobre tensões e superações comuns a todos nós.

Aqui também serão registradas histórias de pessoas que enfrentam ou enfrentaram seus próprios desafios de vida. A ideia é criar um espaço para compartilhar histórias de superação ou mesmo de não-superação. Será um registro sobre a forma como lidamos com algo que, um dia, a ciência promete vencer: o drama da doença e de nossa própria morte.