sábado, 25 de março de 2006

Rezemos para vmat2

"Se Deus existe, por que Ele não faz alguma coisa?". Muitos seres humanos já fizeram essa pergunta, para si ou para outros, em algum momento de inconformismo ou desespero. Eu mesmo já me perguntei algumas vezes. Faz todo sentido perguntar, pois não é fácil compreender como um ser que habita o andar de cima, carregando tantos supostos poderes, pode consentir tamanhos absurdos na existência humana. Dizem-me que Ele age assim porque sabe o que faz, porque tem a absurda mania de escrever certo por linhas tortas. Escuto isso desde minha infância, mas a lavagem cerebral ainda não surtiu efeito. A não ser por esse pronome "Ele", que só consigo escrever em letra maiúscula.

Considero uma ideologia de conto de fadas a crença em Deus da forma como ela está estabelecida: um ser divino, altruísta e benevolente, criador de toda a vida e que olha por nós a todo instante, pronto para resolver nossos problemas cotidianos. Fosse assim como o pintamos, não teria deixado o próprio filho padecer nas mãos dos neuróticos que Ele mesmo, segundo consta, teria criado à sua imagem e semelhança. Também não permitiria que outros tantos filhos tivessem atravessado a história da humanidade em meio ao sofrimento da miséria, da tortura, da incompreensão, da violência gratuita e da intolerância. É mais razoável assumir que Deus, caso de fato exista, seja o próprio paradoxo e contradição em pessoa, o que afasta a idéia sentimental que temos Dele, mas nos aproxima de sua verdadeira essência.

Se depender da ciência, as céticas palavras acima encontram algum fundamento na biologia do século XXI, especificamente no campo da genética comportamental. Dean Hamer, geneticista americano, autor do livro "O gene de Deus" (Editora Mercuryo, 2005), gerou forte polêmica ao considerar que o Todo Poderoso pode ser apenas uma seqüência de nosso código genético. Na verdade, o velho Dean afirma que o gene determinaria a predisposição à fé nos humanos, não sendo exatamente o próprio Deus. Mas, como um bom título também estimula as vendas, a polêmica foi instaurada. O gene isolado por Hamer e sua equipe, no Instituto Nacional do Câncer, nos Estados Unidos, é identificado pela sigla vmat2. Estaria envolvido no transporte de uma classe de mensageiros químicos do cérebro, conhecidos como monoaminas, do qual o mais famoso é a serotonina, a molécula do bem-estar. Só para constar, o ecstasy e o Prozac influenciam positivamente o humor alterando os níveis de serotonina em nosso sistema nervoso. Hamer chegou à descoberta por acaso, analisando os hábitos de pacientes tabagistas, dentre os quais a disposição à espiritualidade. Todos aqueles que se disseram mais crentes em Deus, considerando-se mais místicos ou espiritualizados, apresentavam o tal vmat2.

Não é de agora que Dean Hamer causa polêmica. Em 1993, afirmou ter descoberto um trecho de DNA supostamente responsável pela homossexualidade masculina. A descoberta lançou-o à fama e depois à lama, quando outros cientistas falharam em replicá-la. Mas, olhando por aí, parece que esse cientista tem alguma razão dessa vez. Afirmo isso porque tenho a plena convicção de que, se realmente acreditássemos em Deus e em toda sua onipresente força, certamente não teríamos agido e não continuaríamos a agir de forma tão predatória em relação à vida.

Muitos daqueles que disseram crer em Deus promoveram e promovem a discórdia, patrocinaram e patrocinam a miséria, disseminaram e disseminam a violência, defenderam e defendem a ignorância, levaram e levam suas vidas com uma pobreza singular de espírito. Muitos são racistas, machistas, neo nazistas, terroristas e todo o tipo de falsos moralistas, só para não perder a rima. Também somos nós no dia-a-dia, no momento em que admitimos a desigualdade social de nosso país, a falta de ética de nossos governantes, a fome em nossos cidadãos, a submissão em nossos trabalhos, o autoritarismo de nossos professores, a intolerância de nossos pais, a hipocrisia de nossos semelhantes. Indicadores de nossa descrença em Deus, misturados à falta de cidadania, à falta de ética, à falta explícita de um norte espiritual que realmente fosse levado a sério. Só nos resta rezar. Não para Deus, mas para que a ciência consiga reparar o vmat2. Certamente há uma falha grave nessa seqüência genética.

sábado, 11 de março de 2006

Liberdade condicional

Sempre gostei do som do U2, principalmente das letras de suas músicas, mas nunca levantei a hipótese de batalhar por um ingresso para o show do grupo em terras brasileiras. Tenho poucos gostos musicais, já não idolatro bandas ou cantores e nunca faria plantão para conseguir um lugar ao sol, como fizeram os fãs brasileiros de Bono "Vox".

Também tenho uma visão crítica (para não dizer ranzinza), sobre mega espetáculos regados a milhões, principalmente num cenário como o Brasil, onde faltam tostões para o pão diário de milhares de cidadãos. Nada contra os shows em si.

É o contraste que me incomoda, esse choque de nossa cotidiana pobreza com um momento único de gigantesco investimento financeiro. Neurose de quem vive num dos países mais desiguais do mundo. Também sentimento de culpa pela convivência incessante com os excluídos que vagam pelas ruas de São Paulo.

Querendo ou não, já se tornou inevitável pensar naquilo que poderia ser feito com os milhões de reais que a mídia investe em duas poucas horas de êxtase. Enfim, não sei se foi por minha declarada falta de idolatria, talvez por minha postura de "isso não é pra mim", acabei ganhando, de última hora, um ingresso para o show do U2. Veio pelas mãos de um amigo, por sua vez amigo de um empresário envolvido com os patrocínios do show. Pela reação dos que souberam, eu havia acabado de acertar na loteria, tamanha tinha sido a disputa pelos ingressos.

Durante o show entendi o porquê do delírio coletivo. Uma tecnologia de palco inédita no mundo, uma banda de rock politicamente correta, um vocalista engajado em causas humanitárias e um estádio no bairro mais nobre de São Paulo. Para completar, uma noite de calor e céu limpo, pouco comum nessa poluída metrópole.

Há pouco tempo pedi, em outro texto deste blog, um distanciamento temporário da angústia provocada pela miséria das ruas de São Paulo. Pedido feito, pedido aceito, pelo menos por duas horas foi me dada a chance de subir à tona, antes de voltar à realidade de exclusão. Durante essas duas horas, conforme as mensagens humanitárias ganhavam o super palco tecnológico do U2, a sensação era de que o mundo poderia dar certo. Ali, naquele instante, vendo aquela multidão sensibilizar-se e apoiar as causas do grupo, até parecia fácil mudar a realidade. Tive a sensação de que era só sair dali e começar a batalha. Ilha da fantasia, eu sei, mas foi bom viver assim por alguns instantes.

Se muitos curtiram, outros partiram para o ataque. Li críticas ácidas sobre a forma como Bono e o U2 tratam os problemas do mundo. Os mais mau-humorados dizem que o grupo mistura alhos com bugalhos, ou seja, o problema da fome com as desavenças religiosas do oriente médio, a excludente economia mundial com os ideais etéreos de uma humanidade sem direita e esquerda, sem elite e pobreza.

Da forma como entendo, música, arte e cultura estão aí para mostrar como o mundo deveria ser idealmente, não para apresentar metodologias de como chegar até lá. Outros disseram que Bono equivocou-se ao procurar Lula para uma conversa. Além do encontro oficial, Bono também poderia ter se encontrado Zilda Arns, da Pastoral da Criança, ou Oded Grajew, do Instituto Ethos, duas lideranças importantes no campo de nossas ações sociais. 

No final das contas, tive minhas duas horas de folga. Seria bom viver sempre com essa sensação, mas a saída do show não deixou dúvidas de que o benefício de minha liberdade era por pouco tempo. Lá estavam as crianças de rua, os ambulantes desesperados, os excluídos pedindo mais um pouco de socorro. Começava a voltar à prisão da desigualdade.

A ilusão foi ficando para trás, enquanto caminhávamos pelas ruas do Morumbi. Durante a volta ao cárcere, foi estranho notar uma grande quantidade de casas com a placa de "aluga-se" pelas ruas do bairro, que já foi o mais luxuoso de São Paulo. Dizem que é por causa da insegurança crescente. Os moradores estão abandonando as mansões e mudando-se para prédios ultra seguros. Já disse que isso é atitude de elite que não se preza. Comecei a pensar em como estará o bairro do Morumbi no futuro. Parei de pensar no instante seguinte. Talvez não haja futuro... nem para mim, muito menos para os excluídos.
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Meu agradecimento especial ao amigo Paulo A. Cruz, que conseguiu o convite gratuito para o show.