sábado, 14 de janeiro de 2006

Um corpo no meio do caminho

Foram todos à praia para aproveitar mais um dia de calor. Foram crianças, suas mães, seus pais, foram os amigos. Brincaram na areia, no mar, voltaram à areia e ao mar novamente. Compraram água de côco, sorvete, biscoito. Descansaram, divertiram-se e relaxaram. Tudo isso com o cadáver que jazia na areia onde as pessoas só se divertem. O cadáver que ficou ali por horas a fio, como se estivesse tomando sol, bronzeando-se, à toa na vida.

É surreal, mas esse fato é verídico. Aconteceu ontem, na praia de Ipanema. Sexta-feira 13, por ironia do destino. Também é verídico o mau cheiro do corpo, assim como a tranqüilidade dos que passavam e o tempo de seis horas que o cadáver ficou exposto até ser retirado. Alguns famosos, como Cléo Pires, também estavam na praia ontem, conforme atesta a reportagem que deu origem a este texto.

O episódio virou notícia de primeira página da Folha de São Paulo de hoje, 14/01/2006. A matéria diz que o corpo não havia sido identificado ainda, pois estava com muitas marcas de violência. Mas deram um palpite sobre o itinerário pelo qual viera. Provavelmente lançado da favela do Vidigal, localizada próxima à Ipanema. Chegou nas ondas do descaso secular com nossa gente, da desigualdade que nos contaminou há muito tempo, da violência que nasce e cresce a cada dia. Mas, segundo a reportagem, a rotina de Ipanema pouco mudou. Diz o texto: "Apesar da cena inusitada e do mau cheiro causado pelo cadáver em decomposição, a rotina da praia quase não mudou. O trecho é freqüentado por jovens da zona sul. A atriz Cléo Pires estava ontem na praia. Um estudante que estava com os amigos comentou: "Vamos fazer o quê? As férias são curtas e temos que nos divertir de qualquer jeito".

É o que resta de uma sociedade que pouco se preza. Escrevi esses dias sobre isso, foi quase um presságio. Alertei que a elite brasileira surfava na onda da desigualdade. Mas, pelo jeito, ninguém se importou muito com o mau cheiro. Talvez sejam necessários mais corpos até tomarmos uma atitude. Até lá, fingimos não ver, fingimos que está tudo bem. Não está.
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Foto retirada da ilustração da reportagem "Verão Macabro", da versão online da Folha de SP de 14/01/2006.

Um comentário:

  1. Dei umas boas risadas com esse seu texto, mas depois caí na real: é, moço... "tá lá o corpo estendido no chão"... e menino de 19 anos acredita que há um jeito possível de se divertir, mesmo em meio à toda a cadaverina e com consciência pesando, dizendo que é preciso mudar. Ele, e também nós, estamos todos mais anestesiados e imóveis que o moço do plástico... acho que não nos importaremos se nos jogarem areia, se as crianças morrerem de fome, se os deputados ganharem salários extras, se os EUA não assinam tratado de Kioto... tudo normal. Talvez por isso ninguém tenha se importado com a morte estendida na praia.

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