quinta-feira, 5 de janeiro de 2006

A escola que não tive

"Fomos maus alunos" é o título de um livro escrito por Gilberto Dimenstein e Rubem Alves. Um jornalista de renome e um acadêmico/filósofo idem. Sentaram-se para conversar sobre seus descaminhos escolares e publicaram um livro sobre a escola que não tiveram. Ou melhor, tiveram, mas seria melhor se não a tivessem tido. O livro é de 2003. Comprei-o mais pelo título, para ter na estante minha carta de alforria, um atestado de que o problema não foi só comigo. Já havia lido resenhas e conhecia seu conteúdo por cima.

Comecei a lê-lo hoje, 5 de janeiro de 2006. Talvez nem precisasse fazer a leitura, pois trago comigo, assim como qualquer aluno das décadas de 70 e 80, o dissabor da escola que tive. Antes de continuar a leitura do livro, decidi elaborar breves linhas sobre minhas lembranças escolares. Mero exercício de recordação pedagógica, talvez não das melhores, mas um importante exercício para quem optou por trabalhar com educação.

A escola que tive ensinou-me história através de questionários decorados, não de discussões sobre os significados reais dos fatos e de suas possíveis manipulações e interpretações ideológicas. Ensinou-me química através de fórmulas decoradas, as quais nunca consegui transpor para meu cotidiano quimicamente construído. Ensinou-me biologia através de uma enxurrada de terminologias decoradas. A lousa chegava a ficar interessante com tantos desenhos de estruturas celulares, mas a decoreba pouco esclarecia sobre o mundo biológico que me rodeava.

A escola que tive ensinou-me física através de fórmulas decoradas, mas nunca fui motivado a compreender por que o tempo às vezes parava (nas aulas) e às vezes corria (nas brincadeiras). Ensinou-me matemática através de equações prontas, e essas judiaram de mim até não poderem mais. Professores e professoras particulares entraram na jogada. Pouco adiantou, sempre passei raspando, quase ficando, sem que qualquer sentimento maior fosse despertado pelos números. Ensinou-me educação artística obrigando-me a pintar figuras com as cores que a professora ordenava, não com as cores que minha imaginação pedia. Quase nada falaram sobre os caminhos da arte pelo mundo, das obras, pintores e escultores famosos.

A escola que tive ensinou-me educação moral e cívica, nome bonito para uma manipulação invisível que doutrinava nossas mentes a mando da ditadura então instalada. Tentou-me ensinar educação física, mas, por sorte do destino, fui dispensado das aulas por ser atleta de natação. Extrema sorte, pois foi nadando que encontrei minhas grandes amizades, inúmeros de meus valores e até mesmo minha profissão. Mas soube que a educação física da escola também fizera suas vítimas, pessoas que nunca mais voltaram à prática de atividade física, pois a contínua experiência de exclusão nas aulas (10 jogavam, 30 ficavam fora) apenas desestimulava a prática saudável do movimento.

Minha escola ensinou-me português através de regras gramaticais decoradas, estruturas frasais coordenativas e subordinativas repetidas à exaustão, as quais trago em minha memória até hoje. Ajudou-me muito ter um pai professor de português e uma mãe deveras exigente. Que nos faziam decorar, é verdade, mas também nos estimulavam a leitura. Foram as leituras que nos salvaram, a mim e a meus irmãos, e nos despertaram para a beleza de uma boa escrita, de uma frase corretamente dita, para a curiosidade constante pelo mundo das letras.

Os professores que tive, até hoje não consigo julgar se eram algozes ou vítimas daquele sistema. Quero acreditar na segunda opção, pois a maioria chegava às aulas com o ânimo do réu que caminha para a execução. Postura de vítima, sem dúvida. Faziam da chamada um momento interminável. Cada minuto ceifado era importante para disfarçar o desânimo que enfrentavam. Por outro lado, aqueles mais dispostos vinham com a disposição do carrasco. E muitas vezes foram. Mas, até mesmo esses teriam nos ensinado de forma mais atraente se pudessem, se os permitissem. Dos professores, lembro-me também do escárnio que tínhamos com alguns. Aí os papéis invertiam-se, também tínhamos nosso momento de algozes. Creio que vários chegaram a fazer terapia, o que não seria pouco diante das atitudes perversas de nosso descontentamento infanto-juvenil.

Por outro lado, a escola que não tive teria ensinado-me a importância da participação de cada aluno na construção de um ambiente escolar mais estimulante e mais democrático. A escola que não tive teria estimulado seus futuros protagonistas sociais a construir uma sociedade mais justa em todos os sentidos. A escola que não tive não exitaria em conscientizar seus alunos sobre a importância da igualdade social para o bem estar do próximo e do próprio mundo. A escola que não tive teria ensinado-me todas as matérias que listei de forma mais atraente, sem jogar nos alunos a culpa pelo desinteresse por uma pedagogia nitidamente deturpada. A escola que não tive teria ensinado sociologia e filosofia a alunos e professores, teria informado a todos sobre a pedagogia de Paulo Freire, teria nos dito sobre a existência de Summerhill. Encontrei-os depois de adulto, lamentando por não tê-los conhecido anteriormente. A escola que não tive teria professores dispostos, salários decentes, alunos críticos e participativos. Haveria, fundamentalmente, respeito entre todos.

A escola que não tive não me foi dada de propósito. Não seria interessante formar cidadãos tão conscientes assim. Não é até hoje. Paciência, estou aprendendo agora, espero que muitos também estejam. Poderíamos ter uma sociedade melhor hoje em dia, poderíamos estar um passo à frente, não fosse tanto tempo perdido com aulas insossas. Resta-nor ir atrás do prejuízo, pois o tempo ficou mais curto. Não sei se é suficiente para mudar as graves situações sociais e ambientais que transbordaram nos últimos anos. Correr é a opção que nos resta. Só não nos esqueçamos da educação crítica nessa corrida, pois o tempo nos devolverá a omissão do presente. Lei da ação e reação. Uma das poucas que aprendi em física.
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Nota: A construção verbal correta seria "minha escola ter-me-ia ensinado", sempre no futuro do pretérito.  Mas achei que a leitura flui mais com "minha escola teria ensinado-me".
Ilustração retirada de http://www.universiabrasil.net/preuniversitario/images/unesp/pedagogia.jpg em 07/01/2006

3 comentários:

  1. Bacana esse texto, Dri, mas ainda nao escreveu sobre o que te pedi, nao eh capaz?! Bjs

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  2. Oi, Adriano... vim ao seu blog pelo blog da Carmen. Esse seu texto sobre a escola me chamou atenção... Acho que estudamos na mesma escola (todos da nossa geração), que era ainda melhor que as escolas de hoje. Sou professora também e a vida tem me feito refletir sobre meu jeito de dar aulas e como fazer para despertar no aluno o interesse pela minha disciplina. Ainda não cheguei a conclusão alguma, mas é bom ser instigada...
    Um abraço!

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  3. Oi, Vivian
    Obrigado pela visita ao meu blog. Com certeza, estudamos em escolas bem parecidas, ainda que bem distantes um do outro. Como professor, sei que não é fácil exercer nosso ofício de forma diferente do que tivemos na escola. Mas pelo menos temos essa intenção de querer melhorar, já é um grande passo. Em SP há uma escola como a que gostaria de ter tido. Dê uma olhada em http://www.lumiar.org.br
    Abraços,
    Adriano

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