Moro próximo à Rua Vergueiro, uma das mais movimentadas de São Paulo. Rua com movimento e estrutura de avenida. Cinco pistas, todas sempre cheias. Esses dias, enquanto aguardava meu pedido numa lanchonete da esquina, parei para contar o número de carros que transitavam. Coisa de maluco, eu sei, mas foi só para passar o tempo. E passou. Foram 103 carros no primeiro minuto, 96 no segundo. Fiz os cálculos, abaixando um pouco essa média, afinal as madrugadas são razoavelmente tranqüilas. Em um único dia, por volta de 100 mil veículos passam por aqui. Não é muito quando comparado às marginais. Mas é um número expressivo, sem dúvida.
Não só carros, mas muita gente circula por essa região. Agora à noite eu também circulei, fui até o hipermercado da esquina, aberto 24 horas, uma vantagem numa cidade onde o tempo parece escasso. Chegando próximo à primeira entrada, avistei várias crianças de rua, muitas aparentemente sozinhas, algumas com suas mães, raríssimos eram os pais. Quase sempre estão por ali, mas hoje pareciam mais, bem mais.
É inevitável adentrar o hipermercado sem levar algum pedido do grupo acrescentado à lista. Sempre colaboro, muitos clientes colaboram. Mesmo porque os pedidos são simples e quase sempre os mesmos: um pacote de macarrão ou uma lata de leite em pó. Ação emergencial, pouco eficiente, muito assistencialista, mas creio que necessária e inevitável. Simples de se resolver naquele momento. Mas nem um pouco simples de digerir, pois fica-se sempre com uma sensação de impotência diante de um problema que quase não muda e que ninguém resolve.
Hoje eu desviei dos excluídos. Dei meia volta. Faltou-me força, faltou-me coragem. Não queria ver esse tipo de sofrimento mais uma vez. Creio que uma das mães chegou a gritar o nome de um produto. Não sei se foi comigo, já estava me dirigindo à outra entrada, onde o movimento dos cidadãos da rua quase não existe. Fui me culpando pelo desvio, mas também tentando dar-me alguma razão, tentando convencer-me de que a culpa não é minha.
Minhas elocubrações duraram até alguém dizer: "Tio, compra um pacote de maisena pro meu irmão?". Pois é... não havia adiantado fugir, nem dar as costas. As vítimas da exclusão social estavam na outra entrada também. "Só maisena?", foi a única pergunta que consegui fazer. "Só, é pra fazer mingau pro meu irmão". "Ta bom, já trago".
Um pedido simples, um produto barato, mas que nos obriga a refletir sobre o caminho que nosso país decidiu percorrer. Tentei me distrair com a música ambiente do hipermercado que tenta trazer conforto aos clientes. Não surtiu efeito, baladinhas não combinam com exclusão social. Tentei, então, concentrar-me nos produtos, lembrei-me que maisena se escreve com s, não com z, como está na caixa. Também inútil, pois uma senhora passou comentando com outra garota: "Parece que aumentou o número de crianças de rua!... eu morro de pena". Enquanto a outra respondia: "Eu não tenho pena, já cansei de ajudar, acho que eles se aproveitam da gente!".
Vítimas reclamando de vítimas. De um lado, uma elite que se vê diante dos frutos de um descaso social histórico, sem saber como sair dessa. De outro, as verdadeiras vítimas, cuja única opção é "importunar" os clientes e lhes cobrar a dívida do descaso público, a única estratégia de sobrevivência dos excluídos naquele momento.
De minha parte, parei para falar com o gerente. Disse-lhe que precisamos nos mobilizar, que o hipermercado poderia fazer alguma coisa. Ele me disse que muitos clientes pensam o mesmo. Disse-lhe que nossa sociedade não pode conviver, de forma natural com uma desigualdade dessas. Ele concordou no ato: "- Absurdo mesmo!". Disse-lhe que poderíamos mobilizar ONGs da região, cobrar o poder público, acionar outras instâncias. Ele me disse que já tentaram, mas que poderíamos tentar de novo. Disse-lhe que iria pensar numa saída, conversar com amigos, procurar me mexer. Ele me apoiou e me desejou sorte.
Deixei a maisena com o rapaz, acrescida de um pacote de bolacha. Escrevo em péssimo estado, a culpa sentada ao meu lado, a frustração também, a raiva, o inconformismo, creio que meu comodismo, já não sei mais por onde sair. Queria uma folga disso tudo, queria não pensar, queria não encarar essa situação, queria um descanso da desigualdade.
Pensei nos carros, foi por isso que falei dos milhares de carros. Talvez um pedágio na minha esquina. Foi ali que contei 100 mil carros por dia. Talvez cobrar 1 real, 50 centavos de cada um. Se fossem 10 entavos, seriam 10 mil reais por dia, trezentos mil por mês. Acho que dinheiro suficiente para alimentar nossa gente. Pelo menos alimentar, depois veríamos o resto. Talvez pudéssemos construir alguns abrigos, dar alguma educação, alguma assistência. Os carros estão passando, vou tentar me distrair com eles... sei que não vou ter uma noite muito boa... quem sabe a saída está nos carros? Delírio, eu sei... só queria um pouco menos de miséria... uma folga para a angústia...
Nossa... é tanta coisa que eu tenho pra dizer sobre esse seu post que esse quadradinho aqui vai ficar microscópico. Acho melhor escrever sobre isso no meu blog. Depois que eu conseguir entregar a minha dissertação - que é justamente sobre os meninos de rua de Belo Horizonte - eu coloco alguma coisa lá. Uma boa discussão essa...
ResponderExcluirCarmen, não sabia que sua dissertação era sobre meninos de rua de BH. Muito legal de sua parte abordar o tema. Depois que vc entregá-la, seria interessante mesmo transportar alguns pensamentos para o Resquícios do Dia.
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