domingo, 7 de fevereiro de 2010

A reflexão perdida


Penso, mas pouco reflito.
Pergunto, mas não me respondem.
Ouço, mas pedem que eu não escute.
Faço, mas dizem que não é assim.
Vou, mas tentam me segurar.
Volto, mas tentam me impedir.
Protesto, mas tentam me calar.
Mostro, mas dizem que não veem.
Calo-me, então, como um morto.
Afirmam, finalmente, que estou vivo.

Estou parado em frente à tela de meu blog há um bom tempo, tentando elaborar frases de efeito para iniciar esse texto. Consegui elaborar essas acima. Já havia escrito algumas orações mais convencionais, mas nada parecia ter o impacto que pretendia dar ao assunto. Talvez seja o calor deste domingo de fevereiro, mas me recuso a culpar o clima pelo vazio momentâneo de ideias.

É curiosa essa dificuldade para achar as palavras certas, montar a estrutura adequada de raciocínio. Escrever não é tarefa fácil, todos sabem disso. Mas há algo logicamente construído por detrás dessa dificuldade, uma espécie de sombra que se projeta sobre a capacidade de reflexão de inúmeras pessoas.

A dificuldade de escrever não é apenas falta de prática ou de muito estudo sobre gramática. É uma dificuldade imposta de propósito em muitos países e sistemas educacionais. É uma dificuldade completamente artificial, programada desde nossa infância.

Não é interessante que qualquer pessoa saiba expressar muito bem suas ideias e valores. A boa escrita determina a classe social da qual viemos, é uma espécie de passaporte diplomático, algo que poucos possuem. É a forma que as classes mais dominantes possuem de exercer pressão sobre as classes menos privilegiadas. Ideias expressas em letras tornam-se livros. Livros tornam-se instrumentos ideológicos. E ideologia é uma forma antiga de dominação.

Faço parte de uma geração que foi estimulada a pouco escrever. Recebemos educação escolar e familiar aos montes, mas sempre em doses bem controladas. Sou fruto de um sistema social e educacional onde se ensinava a engolir pensamentos, ao invés de manifestá-los. Impulsos como reflexão, crítica, questionamento e curiosidade eram tratados com muito cuidado por educadores, pais e sociedade em geral.

Nasci no início de 1970, poucos anos após o golpe militar que cravou a indigna ditadura no Brasil. Tão indigna, que minha infância e adolescência foram cercadas por um currículo escolar fragmentado em disciplinas desconexas, especialmente elaboradas para serem decoradas, jamais questionadas.

Passei quase minha vida inteira em escola pública, considerada referência de qualidade à época. Apesar do currículo engessado em matérias isoladas, era o que havia de melhor dentro do regime ditatorial que vigorava no Brasil. Mas esse 'melhor' era até a segunda página, depois disso o sistema educacional transformava-se numa sequência de fatos, fórmulas e regras decoradas. E decorada não significa aprendida a partir de alguma reflexão. Já comentei sobre isso em outro post

Essa pedagogia da alienação surtiu alguns efeitos. Aprendemos a pensar sim, mas meio às avessas. Como era impensável criticar professores e diretores, aprendemos a engolir nossos protestos e a pouco externar nossas opiniões. Como não nos ensinaram a razão da pobreza e da riqueza, aprendemos que os bens materiais definem o caráter das pessoas.

Como não nos ensinaram filosofia, não aprendemos a distinguir o mundo falso do mundo real. Como não nos ensinaram sociologia, não aprendemos sobre a estrutura desigual de nossa sociedade.  Há essas e outras falhas em minha formação... e o tempo parece escasso para desprogramá-las.

Criei meu blog justamente para exercitar o senso crítico que pouco exercitei durante meus anos escolares. Escrevo, portanto, para salvar a mim mesmo, pois sou um náufrago da má pedagogia. Sei que há muitos outros náufragos à deriva, pessoas que ainda falam, criticam, expressam, combatem, reflitem. Se você fizer o mesmo, muitos saberão que também sobreviveu.
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Imagem: http://niilismo.net/galeria/pictures/repressao.jpg

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